Lilibet

Sempre se ouviu dizer, e escreveu, que era uma figura meramente decorativa, falha de poderes efectivos e apenas representativa do Estado e da Commonwealth.

E de passados continuados em que as pessoas não são todas iguais (em que, portanto, uns gozam de privilégios e outros não).
Assim e pelo seu tempo, não lhe podem ser imputadas as muitas atrocidades que nele o Império cometeu, pois a sua voz não tinha tido cabimento nas decisões que lhes estavam por detrás. Apenas as assentiu ou nunca teve qualquer pronuncia em que as denunciasse, ou em que delas se demarcasse; em que, ademais, se mostrasse cidadã dum mundo igualitário que, na verdade, não era o seu. Muito pelo contrário, pois parece ter sido sumamente visível que sempre cultivou um distanciamento de suserano para com os seus, digamos, vassalos. Num tudo bem manifestado nas mordomias, modus vivendi e demais cerimoniais ostentatórios com que se rodeava; muitos deles estendíveis, nas devidas proporções, ao seu agregado familiar e parentes mais próximos.


Adiantada esta imputação, era uma mulher datável do princípio do século passado, com a educação atinente e própria do específico meio ultraconservador em que foi criada, com a publicitada imagem correspondente e que, reconhecidamente, por si, nunca transgrediu ao que dela se esperava nesse contexto. Tendo cumprido bem, portanto, o destino que acabou por lhe caber e o que ele lhe exigia. E por longuíssimos anos.
Com custos? Evidentemente! Desde logo o da liberdade de si. Mas esse era sabido e inerente ao cargo, no que este lha restringia; mas soberanamente compensado pelas condições que lhe foram proporcionadas. Por todos os benefícios que nos eram patentes, visíveis e por todos os outros, menos perceptíveis, de que usufruía. Quem não gostaria de os ter tido? Quem não estaria disposto a renunciar aos ditos custos para auferir dessas regalias? E não se o esqueça, algumas abarcadoras do seu agregado familiar.
É certo que este último lhe deu algumas dores de cabeça e, mesmo, se distanciou da sua imagem de pessoa de boa reputação. Mas que, directamente, não foi ela quem a elas deu azo, pelo que essas manchas só ligeiramente a salpicaram.

Por tudo isto, o retrato que dela fica é o de, aparentemente, uma pessoa socialmente respeitável, por de um correcto comportamento. E ponto final!
Mas no que verdadeiramente ela consistiu foi, apenas, em ser mulher, mãe e avó. Provavelmente e no âmago da sua existência, mais Lilibet do que qualquer outra coisa. Que essa outra coisa, a pública, era a de um anacronismo provindo dum comprido passado e a ainda tolerável herança da era victoriana. De um faustoso cerimonial, puritano na apresentação e carregado de privilégios, de distinções e benesses incompatíveis com uma qualquer noção democrática. Assim, na continuidade de divulgação da imagem de marca que essa sua trisavó e o seu também largo reinado propulsaram, ela era um ícone já inconciliável com o século XX; quanto mais com o XXI.
Que mulher contemporânea democrática, mesmo ocupando um similar pedestal, compreenderia e defenderia uma mentalidade correspondente à que ela exibia quanto à igualdade de direitos.
Sim, porque as desigualdades em virtude da nascença colidem com princípios fundamentais adquiridos (Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigos 1.º e 2.º; Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigo 14.º; e lembrando, por cá e ainda que espúrio neste caso, a Constituição da República, artigo 13.º). Mas e não obstante este consenso convencionado universal e regionalmente, fazendo por o ignorar, ela promovia-as e propugnava pela sua manutenção; sem que alguma vez tenha tentado limitá-las.
Nisso ficámos! No seu afrontamento ao basilar pilar da democracia: o da igualdade.
É que a igualdade de direitos e a consequente negação de quaisquer disparidades provenientes de particularidades pessoais são, actualmente e na sua base afirmativa, tidas como factor democrático instituído; e que, inclusivamente e para além desse ponto de vista cívico, vão da doutrina católica (Fratelli Tutti) à justificação da criminosa invasão da Ucrânia. Sendo certo, porém, que muitas outras situações de facto imensamente mais danosas, e generalizadas, são uma realidade persistente por esse mundo fora (p. ex: o problema da emigração, nas várias causas que a motivam). Mas essa circunstância não exime a do seu longo posicionamento retrógrado; que as excêntricas e prolongadas cerimónias fúnebres, que se anunciou terem sido por ela estipuladas, mais vieram acentuar.

Escrito tudo isto, mais uma vez a deriva. E aqui com alguma ligação com a propalada igualdade. Assim e aparente fenómeno que se deve poder considerar: o da indigitação espacial. As culturas mediterrâneas e posteriormente as europeias delas provindas, de certa maneira, estabeleciam uma relação entre o humano e o território: ou, se se quiser, o inverso. Fosse ela ao nível de povos ou por aí abaixo até às pessoas (as atribuições e os toponímicos atestam-no: europeus, portugueses, nortenhos, minhotos, vimaranenses, dos Guimarães, etc.). E quanto mais se anda para trás no tempo, mais a realidade da ligação ao local é concreta. Era, é, um sentimento tão entranhado nos nossos emigrantes torna-viagem que estes o expressavam em actos aquisitivos e construtivos; e, cum grano salis, transparece da célebre parábola evangélica do filho pródigo. E era o assumir a terra/casa como um cordão umbilical a um chão ancestral, a um lar; e tão forte era esse sentimento que até se ironizava que, mesmo depois de morto, para se tirar o corpo dela eram precisos quatro homens. Ligação essa que, conjuntamente com a sanguínea, familiar, estabelecia laços sucessivamente perduráveis, identitários e, por conseguinte, de pertença. Pertença que provinda de ocupações, concessões feudais, posses, residências continuadas e, até, de simples indicação de origem, estava profundamente enraizada. E causadora primária de diversificações que a cultura urbana tem tendido a eliminar. Efectivamente, ao paulatinamente ter vindo a desparecer essa correlação, as disparidades como resultado dessa pertença, a níveis individuais, têm-se vindo a atenuar e a igualizar, nesse aspecto, a personalidade. Ou seja, os urbanos dum concreto aglomerado e nessa perspectiva, não padecem de uma qualquer diferenciação que os valorize ou deprecie.

Encarreirando, só falta adiantar que as desigualdades não merecem ser difundidas como desmedido espectáculo promotor de passados ultramontanos.
Haja decoro!

Fundevila, 20 de Setembro de 2022


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