Viver dos rendimentos

Não haverá forma mais tranquila de viver a vida que não seja a de usufruir os rendimentos que nos deixaram. Alguém, de família, algures na linha genealógica,

fez fortuna e os seus descendentes aproveitam a bênção. Uns, poucos, acrescentam, outros mantêm e a maior parte, por ócio, desinteresse ou inabilidade, desbarata. Não tenho, por natureza pessoal, qualquer reparo a fazer ao caminho escolhido. São, todos eles, escolhas pessoais e legítimas. Mas, pelo menos, que disso haja a consciência!

Guimarães vive muito dos seus rendimentos passados enquanto comunidade. D. Afonso Henriques é o pai principal dessa herança comum. Ao longo do tempo que lhe sobreveio, fomos, entretanto, acumulando um capital social, comunitário e histórico digno de se constituir como uma herança muito, mas mesmo muito, estimável.
Recentemente, por iniciativa da Assembleia de Guimarães, publicou-se um livro sobre a Unidade Vimaranense. Nesse livro faz-se luz sobre uma iniciativa notável, profundamente enraizada no sentir orgânico da sociedade vimaranense, que, num regime não democrático, teve a coragem de – com muito jeito e inteligência – dizer basta, agindo em conformidade, sem esperar pelas “benesses” da governação nacional ou regional. Esser Jorge descreve com elegância, no livro, esse extraordinário acontecimento, não escondendo, acho eu, alguma angústia na sua escrita pelo facto da comunidade já não ser assim: genuína e generosa.
Ainda mais recentemente, por iniciativa da Muralha, foi dada a conhecer e/ou a relembrar a saga extraordinária da reconstrução da Praça de Toiros, ardida a 28 de julho de 1947, na exposição A Reconstrução, integrada nas Festas Gualterianas. Apesar de, comparada com a gesta da Unidade, esse movimento comunitário não ter de um alcance estratégico tão grande e marcado, mas na verdade a reconstrução da tourada, em 5 dias, bebe da mesma nobreza de caráter e apego à comunidade. Alinha pela mesma coragem e solidariedade dentro da nossa identidade, de que a Unidade Vimaranense foi, mais tarde, um vivo exemplo.

Olhando para nós hoje, enquanto comunidade, fico deveras angustiado. Às vezes parece-me que somos todos – ou pelo menos a maioria – os estroinas e mimados netos que lembram, em conversa, o sangue azul da família, ou o dinheiro do avô, mas nada fazem para honrar a linhagem ou a fortuna. Preguiçosos e muito pouco dados a desempenhar um papel individual no esforço coletivo, entretemo-nos sempre com coisas menores. E se a queda vertiginosa da imponência social e do carácter orgânico e solidário da sociedade vimaranense se afunda, nada vejo que aplaque essa decadência. Pelo contrário, as redes sociais vieram dar voz a um vimaranensismo medido pelo que se grita e não pelo que efetivamente se diz ou faz. Quando alguém tem coragem de dizer que “o rei vai nu” é exposto à fúria da turba ociosa e a apatia reflexiva transforma-se, como que por milagre, num bulício irracional que não aproveita a ninguém.

Dantes ainda nos agarrávamos às estatísticas. Tínhamos mais população, tínhamos mais indústria, tínhamos mais dinamismo social, tínhamos mais história. Tínhamos ... agora já nem isso.
E como qualquer ocioso neto agarramo-nos ao passado, mas sem inteligência nem rasgo. Comprazemo-nos com a memória das coisas e não construímos memória nenhuma que seja digna de registar. Pelo contrário. E quando assim se procede só sobra uma coisa: a fanfarronice. Olhemos, com olhos de ver, para os últimos minutos da gala do nosso Vitória. Quando o bairrismo é confundido com atitudes estéreis e não como uma afirmação de um propósito comum, que acrescente futuro, estamo-nos a reduzir a uma caricatura daquilo que fomos.
Paradoxalmente, releio alguns dos discursos da Unidade Vimaranense, a 10 de dezembro de 1970. Na varanda da Câmara juntam-se homens com diferentes percursos e estatutos – há o cuidado até de dar a palavra ao presidente da Junta de Gondar, Benjamim Rodrigues, que transmite à multidão as dificuldades gritantes das populações rurais-, e alguns, que sabem o quão subversiva é aquela manifestação, como Fernando Roriz ou Fernando Alberto Ribeiro da Silva, sublinham nos seus discursos o caráter não político da iniciativa. Uma mentira, claro, mas uma mentira piedosa, num tempo em que se poderia ir preso por afrontar o regime. Essa coragem e visão de agir em vez de reagir, de incluir em vez de ostracizar, de encarar as dificuldades em vez de ficar submerso nelas ou, pior, de esperar que alguém as resolva, escasseia hoje como a água, ou o bom-senso. As elites cumpriam então a sua mais nobre função: a de verbalizarem uma inquietação comunitária, de a liderarem, em vez de se atulharem nas suas idiossincrasias e nos seus medos.
Mas talvez tudo isto resulte apenas de uma má disposição minha, quem sabe? Vendam-se então as pratas que sobraram da herança e espere-se dos dias a generosidade que deles já não merecemos.

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