Portuguesmente falando

Desde que entrou em vigor o novo acordo ortográfico, não cessou a polémica que ele desencadeou,

rara sendo a semana em que não aparecem linguistas, verdadeiros uns, outros que tal se julgam, perorando a favor e contra o dito acordo.
Sem me sentir apetrechado com razões para considerar como melhor a opinião de quem o aceita ou a de quem o repudia, limito-me a optar por escrever conforme as regras do novo acordo, porque são essas as que a lei determina que sejam as usadas e porque, muito mais amante de um correto português do ponto de vista do significado e uso da palavras, ou seja, da semântica, do que da forma como elas são corretamente escritas em dado momento histórico, a sua atualidade ortográfica (por exemplo, o meu avô escrevia farmácia com ph), preocupa-me, sim, a falta de cuidado, quando não a verdadeira indiferença que é votada à língua portuguesa, nomeadamente através dos meios de comunicação que, muito pior que seguir as deturpações de uso e significado das palavras em português correto, como de modo leviano, negligente e tantas vezes acéfalo fazem, abstêm-se de usar o seu poder de exemplo e influência para corrigirem tais erros e deturpações.

De entre uns e outras sobressaem a conjugação do verbo haver, não faltando locutores, comentadores, jornalistas, e vários outros profissionais para quem o uso do português falado e escrito é essencial, que dizem e escrevem enormidades tais como “houveram muitos atrasos nas ligações ferroviárias”, “haviam muitas pessoas a ver o cortejo”, ou outras frases com idêntico errado uso do verbo haver.
O erro é também frequente nas legendas de tradução de línguas estrangeiras em reportagens televisivas e nas notícias que correm em rodapé durante os noticiários da TV, neste caso com a agravante de não ser raro que o rodapé interfira com a dignidade ou gravidade de acontecimentos que estão a ser noticiados ou transmitidos em direto.

Atualmente assiste-se à substituição da palavra colocar, ou pôr, pela expressão meter. Creio que tal decorre de influência da língua francesa que tantos compatriotas nossos, enquanto emigrantes, se viram obrigados a usar, pois que em francês colocar ou pôr se diz “mettre”, influência que, felizmente cada vez menos, se sente no que toca à palavra férias que muitos dos que emigraram para França, ao falarem delas, diziam “vacanças”, por semelhança com a correspondente palavra francesa, “vacances”
“Zé, mete o boné que está sol”; ou então, “Rosalina, mete o casaco que está frio”; ou ainda, “Vanessa, mete os pratos na mesa que já vamos comer”, são exemplos de um uso indevido do verbo meter que cada vez mais se expande.
Também aqui, em vez da correção, verifico a frequente utilização por parte de quem jamais deveria ceder à absolutamente desadequada desvirtuação do uso e significado daquele verbo, de tal modo que há dias ouvi, num noticiário televisivo, um repórter ou locutor referir-se à tradução de um documento estrangeiro dizendo algo parecido com “o tradutor meteu o texto para português”.
Eu sempre que tal ouço digo para os circunstantes - meter metem-se os supositórios …

Já no que toca à pronúncia regional, pode ela ter-se por mais ou menos bonita, mas não há que ter qualquer tipo de preconceito contra as especificidades de pronunciação de determinadas palavras em certas regiões, não devendo, porém, esquecer-se que, nos meios de comunicação sonora de difusão nacional, tais como TV e rádio generalistas, devem os locutores e apresentadores utilizar, por razões técnicas e de equilíbrio regional, uma correta dicção e pronúncia das palavras, com suficiente intensidade sonora, da primeira à última sílaba, e num português isento de regionalismos.

No nosso país detetam-se mais ou menos facilmente as diferenças de pronúncia, que poderão atribuir-se a cinco ou seis grandes regiões, havendo, ainda, dentro de algumas delas, pronunciações sub-regionais.
No que toca à região em que Guimarães se insere, uma das caraterísticas mais marcantes é a da substituição falada do “vê” pelo “bê”, tecnicamente denominado betacismo e que, de resto, tem ancestral origem fonética e histórica: veja-se que na Galiza e, de um modo geral em toda a Espanha, embora existam as letras “v” e “b”, a ambas correspondem o mesmo fonema ou som verbal “b”. Pronunciam eles “bigo” e “bilbau”, ao referirem-se às cidades de Vigo e de Bilbau. Aliás, no alfabeto espanhol, nem sequer existe o fonema “vê”, pois em espanhol esta é identificada como “ubê”, a fim de ser distinguida do “bê”.

Voltando ao que nos toca e ao betacismo que carateriza o falar de muitos vimaranenses, há casos de tão entranhada pronúncia regional que, mesmo para quem está habituado a fazer a conversão do que lhe é dito por um interlocutor, não é ela feita com o normal automatismo, como no caso que passo a relatar:
Tendo avariado, na minha casa, o aparelho recetor das ondas de TV, telemóvel e internet, foi o mesmo substituído por outro, o que foi feito por simpático e prestável técnico da empresa que me fornece aqueles serviços, tendo sido necessário alterar, para um novo, o código de acesso a eles, código esse apenas alfabético.
Para tal, o dito técnico começou a ditar-me as letras componentes do código (das quais por segurança apenas a última não é fictícia) dizendo – “tudo maiúsculas: Z, F, N, L, N e B de bítor.” (!)
Confesso que demorei mais que a costumeira fração de segundo a processar esta última letra, e para confirmação perguntei, sem resistir à ironia que por vezes me assalta – “igual ao B de baca?”
Perante a resposta afirmativa muito séria e rapidamente dada, lá inseri o “vê” que, por ser a letra correta, me pôs em pleno funcionamento todos os aparelhos carecentes do código para funcionaram.
E assim “bibo” um pouco melhor.

António Mota-Prego

Guimarães, 21 de junho de 2022


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