Elogio da tolerância

Quando assumi a maravilhosa – apesar de extenuante - tarefa de ser pai, deparei-me com um conjunto de problemas que as crianças

tinham e das quais não me apercebera até então: as intolerâncias alimentares. Felizmente apenas as ouvi de outros.

A intolerância à lactose, ou ao glúten, as mais populares das intolerâncias, sempre me surpreenderam, pois delas só tive conhecimento nos anos 90 e sempre me perguntei porque raio na minha infância essas tolerâncias não existiam, já que a espécie é a mesma. As únicas intolerâncias infantis que, sem custo, me lembro, eram a intolerância à sopa e ao peixe cozido. Porém, essas intolerâncias eram sempre resolvidas medicamente com um berro, uma ameaça, ou, nos casos mais agudos, com um par de estalos.

Não pretendo, obviamente, dar uma de bota de elástico e dizer que as intolerâncias são inventadas. Não o serão com certeza, mas, na minha perceção, ao longo dos anos, assisti à profissionalização da desgraça, escrutinando-se nas crianças problemas reais, mas, igualmente, problemas imaginários, que fazem da parentalidade um exercício de medo, tensão e preocupação, quando poderia ser – muitas das vezes – uma coisa divertida.
Ao longo dos anos assisti assim ao nascer de intolerâncias que desconhecia. A alimentar não me atrapalha, as outras sim, porque nunca me habituei a elas. Nem quero habituar.
Tive a felicidade de me formar enquanto adulto nos anos 80 portugueses, o que foi fantástico. Os anos 80 em Portugal foram particularmente interessantes. Neles houve, seguramente, mais dificuldades económicas do que as que hoje existem (o FMI esteve por cá em 1983 e 1984 e a CEE ainda estava a acontecer), mas nessa década começaram a esboroar-se muitos dos preconceitos e certezas que marcaram Portugal até então. Pareciam, à maior parte de nós, absolutamente patéticas as envergonhadas, mas existentes, saudades do antigo regime e do respeitinho é que é bonito, mas, igualmente, se nos afigurava execrável o jacobinismo pós 25 de abril e a pobreza intelectual do pensamento único.

Apesar do meu posicionamento ideológico, fortemente influenciado pelo meio familiar, e só depois pela compreensão das ideias, sempre tive uma atração magnética pelos meios de esquerda, onde pudesse estar claramente em minoria. A entrada para uma República em Coimbra, e o convívio com outros repúblicos, foi uma decisão feliz, que me enriqueceu culturalmente e ideologicamente. Nunca tive problemas nas discussões políticas, a não ser com pessoas estúpidas. E os problemas que com elas tive não foi pelo posicionamento ideológico delas, mas pela sua estupidez. Ainda hoje os tenho, seja para discutir a intolerância ao pepino (a minha secreta intolerância), a intolerância a uma cor de pele, a uma ideia.
Quando entrei em Coimbra para fazer o meu curso universitário, fi-lo com a mesma e exata disposição com que Sir David Attenborough encarou a sua entrada na selva do Bornéu. Ou seja, estava ali para ver e aprender, para me maravilhar, não tanto pelas matérias curriculares que diretamente me diziam respeito, mas, sobretudo, para me embrenhar na fauna de rapazes e raparigas universitárias que, como eu, ali aterraram, e a quem achava piada por serem, precisamente, diversos de mim.
Tive vontade, mas também a sorte, de fazer parte de um mundo novo e aberto em que nada era impossível e em que o experimentar era a única e legítima forma de conhecer. No fundo aplicámos, com rigoroso critério, o método científico à nossa própria vida. Daí que namorar uma hippie tardia ou, passados dias, uma betinha irrepreensível, não era nenhum paradoxo irresolúvel, mas a forma mais perfeita de perceber o mundo e a diversidade que nele habita. Digo eu.

Hoje a intolerância está por todo o lado, até mesmo a intolerância aos intolerantes que eu nesta crónica professo. Dão-me saudades, por estes dias, das inocentes anedotas que começavam por “era uma vez um português, um francês e um inglês”, sem ninguém ao lado a dizer que aquilo lhe parece um pouco xenófobo.
A intolerância é o fundo do poço da convivência humana e o mais eficaz coveiro do humor. A intolerância é chata e nada se aprende com ela. Por outro lado, a tolerância é sempre esclarecida, mesmo que o não seja.

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