ALTO! ... e pára o baile

No princípio era o verbo, ou também o sobejamente conhecido, ou devia sê-lo, ciclo da água e mais propriamente hidrológico.


Assim, como se sabe e verifica, a troca contínua da água entre a hidrosfera e atmosfera, e vice versa, possibilita e permite a sobrevivência da biosfera terrestre através da humidade do ar, do gelo e das águas superficiais ou subterrâneas.


Assim, também, sobre a importância da água para a existência da vida, crê-se não ser necessária uma qualquer demonstração ou exposição. Bastando apenas lembrar no que nos concerne que, sem se alimentar, o homem pode aguentar vários dias, mas desidratado perdura só à volta de sessenta horas.
Feita esta espécie de introdução e mudando de focalização, adiantar-se-á que, como se está a sentir, a seca que vai pendendo sobre esta nossa península ibérica e que os respectivos serviços meteorológicos vão referenciando, e denunciando, tem vindo a agravar-se, como tendência, de há já algumas décadas. Aliás, o ano que corre e para grande parte desta área do noroeste, tem vindo a ser um bom exemplo disso. Faltou a chuva do outono, como também a do inverno e tudo aponta para que, a que está para vir, não irá suprir o necessário armazenamento de águas subterrâneas. É que nesta nossa região estas eram abastecidas predominantemente pelas persistentes e não muito intensas chuvas outonais, que se iam infiltrando na terra e o que mais adiante levava a dizer que por Abril, o das águas mil, rebentavam as nascentes. Na ciência de que as chuvadas dessa altura (bátegas) e quanto maior fosse a sua intensidade, menos se entranham no solo e rápido se transformam em enxurradas que, céleres, se escoam para as linhas de água, com mais ou menos cheias ou destruições.

Estamos, portanto, ao que parece e por estes lados, deparados com a progressiva diminuição duma pluviosidade benéfica; senão mesmo de toda ela.
O porquê disto?
Por uma perceptível alteração climática; seja ela natural ou, esta, agravada pela acção do homem.
Neste aspecto e tanto quanto tem vindo a ser admitido, as variações na Corrente do Golfo (AMOC) e a deslocação do anti-ciclone dos Açores, podem ser a causa próxima das transformações que têm vindo a ser observadas e que estão a mudar a regularidade anterior das estações por estes lados. Mudança que, para quem tem memórias mais longevas, são bastante patentes. Ou já não haverá quem se lembre daqueles outonos chuvosos, de semanas e semanas a fio e que entravam pelo inverno? Ou do Março marçagão, de manhã inverno, de tarde verão?

Ora se a este cenário se juntar o do aumento de consumo decorrente do crescimento demográfico e, sobretudo, da melhoria das condições de vida (quer as inerentes às pessoas, quer as derivadas do incremento da produção), torna-se evidente que o resultado pode vir a tornar-se preocupante, senão mesmo desastroso. Não, certamente e no imediato para os urbanos, citadinos ou sub, que muito se ufanam com o tempo soalheiro, por permissivo duma quotidiana fruição ao ar livre. Ufanam e ufanarão enquanto não lhes faltar a água nos canos e a mesa continuar abastecida de produtos agrícolas. Num alheamento do grave problema que existe e que vai sendo empurrado com a barriga.
Claro que as alterações climáticas que se vão colocando na ordem do dia não dependem da humanidade. Ou melhor, podem apenas ser consequências agravadas por a conduta desta; como parece que vai sendo o consenso generalizado. Entretanto, esse consenso e o desejável para tentar revertê-las, não é uma tarefa fácil. Muito pelo contrário, pois, como se vai alardeando e assistindo, essas denunciadas alterações têm vindo a crescer gradualmente desde a revolução industrial e, sobremaneira, sofreram uma progressão explosiva durante as últimas décadas. Ora essa progressão está directamente relacionada com a sociedade de consumo; com o sistema que está instituído. Julga-se que, seriamente, já ninguém consegue infirmar esta afirmação. Basta para tanto e por exemplo, atentar na magnitude da concentração de plásticos nos oceanos e do risco que isso representa; ou de recentemente se terem detectado microplásticos no sangue humano.

A poluição e as alterações climáticas são, ou deviam ser, assim e actualmente, a maior preocupação da humanidade, porque põem em causa o devir da biosfera.
A propósito e parecendo um despropósito, mas não o sendo por incontornável ocorrência: a guerra. Todas as guerras que grassam por esse planeta fora. E a sua absoluta inadmissibilidade neste século. Mais agora porque, para além do cortejo de horrores, atrocidades e quejandas malfeitorias que provocam, não esquecendo as sequelas que se lhes seguirão (mormente as humanas, com mutilados, feridos, dores e privações de vários géneros), ela, elas, também aumentam a poluição e contribuem para a acentuação das alterações climáticas. Seja directamente e numa escala porventura insipiente, seja pelo espírito bélico que se instalou (numa Europa que se pretende cristã, mas não assume a mensagem - como foi e bem lembrado nestas páginas - da Pacem in Terris; mensagem que se acredita corresponder à essência da cultura europeia) e centra as atenções na militarização, afectando-lhe significativos meios financeiros que bem poderiam ser utlizados para combater aquelas alterações. Enfim! É o que temos. Mas será essa a vontade dos povos, ou e mais uma vez, a decisão duma minoria que impõe os seus interesses?

De retorno às águas e razão destas palavras, há um aspecto que, parece (o caso da encosta da Penha pode induzir a dúvida), que não tem despertado a atenção que deveria merecer, prendendo-se embora com o ciclo hidrológico. Não, não é o problema das águas potáveis, embora também nelas possa influir. É, sim, o da destruição do solo vegetal. Da, inclusive, intrusão em regras da propriedade imobiliária, que estabelecem que os prédios inferiores só estão sujeitos a receber águas, terras e entulhos que naturalmente e sem obra do homem decorram dos superiores. Abstraindo deste pormenor privado, que no entanto autoridades administrativas tendem a ignorar e com isso se tornam coniventes (quiçá corresponsáveis), o que subsiste é o fenómeno real da diminuição da área susceptível de absorção das chuvas; e a simultânea concentração de caudais e o incremento da velocidade de escoamento. Ora, se uns cem metros quadrados aqui, duzentos ali e mil acolá parecem desprezíveis, a verdade é que, somados e ao longo do tempo, começam a ser uma superfície assaz considerável. E a influírem no montante das infiltrações e capacidade dos aquíferos. No entanto e ao que vê, pululam as infraestruturas, as construções e o mais que se vai implantando, com os seus desaterros e aterros, numa indiferença que dói. Persiste-se, pois, na prodigalidade.
E a festa continua.

Fundevila, 6 de Abril de 2022

Óscar Jordão Pires


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