O fim do mundo

Quando eu era pequenito circulava, com frequência, na boca das pessoas mais apopléticas a expressão vem aí o fim do mundo.


A vir mesmo, e já passaram, entretanto, cinquenta anos, eu estarei provavelmente mais próximo do fim do mundo do que estava na altura em que tal se falava. O que não me consola particularmente. Apesar desse facto, e do diabo do Putin estar hoje particularmente ativo, fala-se menos do apocalipse bíblico do que então se falava.
O medo é, talvez, o mais poderoso dos instintos humanos. Veja-se a recente pandemia e a figura de tontos que a grande parte de nós de si fez. O medo é mais fácil de instilar na alma humana do que a coragem. A coragem exige um espírito forte e muitas vezes alguma dose de loucura. O medo não, o medo é instantâneo e faz o seu caminho em nós sem qualquer dificuldade.

Nesses tempos em que se falava, sem eufemismos, do fim do mundo, a minha avó tinha a fixação de, muitas vezes, me levar com ela, durante alguns dias da semana, a uma missa de fim de tarde na Igreja de S.Pedro. Eu seguia-a porque, fundamentalmente, gostava dela. Ainda assim praticava o meu catolicismo. Lembro-me de me fixar, com o fascínio que o medo muitas vezes convoca, numa das imagens laterais que representava o Inferno. Na base da imagem estavam um conjunto de representações de pessoas suplicantes, gritando no meio das labaredas encarnadas, apesar da tinta ter já oxidado a um grená mais elegante, mas igualmente assustador. A imagem de bispos no meio dos condenados dava um toque transversal e democrático àquele Inferno.
No entanto, esse exercício espiritual começou a enfadar-me um pouco e, num particular dia, disse que não à minha avó. Fiquei interiormente com sentimento de culpa, com aquele medo de que Deus, num dia particularmente mal disposto para Ele, separasse os bons dos maus e eu ficasse do lado destes últimos. Ainda a minha avó estava na missa e eu apanhei com um cavaco na cabeça quando, incauto, tentei a minha sorte ao passar por baixo da descarga de lenha que então se fazia em minha casa. O sangue jorrou abundantemente e acabei na Ordem de S. Domingos a receber um cuidadoso curativo de uma freira/enfermeira. Não faltei a mais nenhuma missa.

No entanto, eu e os meus amigos, tínhamos, por essa altura, uma imagem pouco bíblica do fim do mundo. Com o amplo sucesso da cultura de massas anglo-saxónica, a nossa imagem de fim do mundo tinha mais a ver com os filmes de série B ou bandas desenhadas que davam um toque mais moderno ao apocalipse. Normalmente, era uma invasão de extraterrestres que fazia com que o mundo acabasse, ou quase, pois havia sempre um herói que lhes encontrava o ponto fraco. Eles com armas poderosíssimas, com naves absolutamente destruidoras, e havia sempre um esperto que descobria que eles não resistiam à aguarrás, ou a um pedaço de toucinho. Tanto fazia. Mas havia sempre um ponto fraco.
Em bom rigor os extraterrestres também desapareceram de circulação. Dantes enchiam-se páginas sobre o avistamento de OVNI’s, sobre corpos alienígenas a serem estudados em secretas instalações militares norte-americanas, com os olhos esbugalhados e gastavam-se páginas de jornais sensacionalistas nessas andanças. Não sei se será pelo preço do gasóleo ou porque o nosso mundo se tornou efetivamente pouco apetecível para a malta de outras galáxias, mas não há notícias de que tenham voltado para se alimentarem dos nossos pobres miolos. As cabeças já não olham para o céu à procura de disparates alienígenas. As cabeças de hoje fixam-se hoje para baixo, no telemóvel, à procura de outras coisas ... igualmente disparatadas.

O nosso Inferno comum é, por estes dias, televisionado. As imagens de corpos prostrados sem remissão nas estradas da Ucrânia dão-nos esse particular e horrendo efeito. Mas, tal como os extraterrestres de outros tempos, também essas imagens irão cansar, mais tarde ou mais cedo, a quem não é ator, mas apenas espetador da desgraça alheia.
Apesar da literatura de Dante continuar viva, a Igreja Católica terminou já com a ideia de Inferno e Purgatório. O Papa Francisco, na sua habitual elegância retórica e profundo humanismo, disse que o Inferno seria - tão só - estar afastado de Deus. O Inferno não será assim uma condenação, mas apenas uma escolha.
O fim do mundo de quando eu era pequenito implicava uma espécie de Relatório e Contas pessoal. Ou dava lucro, ou dava prejuízo, ou, estando ali quase no empate, permitia a ideia de Purgatório e de expiação. Hoje, isso já não se usa, como então se usava, e o fim do mundo desapareceu da linguagem, apesar de – pelo menos ambientalmente – estar mais presente do que nunca. É necessário estarmos cientes que o fim do mundo já não dará hoje mais pré-avisos, como, quando eu era pequenito, tão frequente o fazia na boca de quem o temia.

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