Medo das bruxas e terror do inferno

Quando eu era criança passava períodos, curtos felizmente, mas algo frequentes, em que era invadido por terrores.


Umas vezes eram as histórias de bruxas, feiticeiras, gigantes e ogres que as minhas tias me contavam, com requintes de realismo descritivo, quando à noite me deitava, fauna aquela de que, fechada a luz, me defendia cobrindo, inicialmente, toda a cabeça com os cobertores, e, como isso me causasse algum calor excessivo e certa falta de ar, seguidamente deixando apenas de fora o nariz, para assim não aquecer em demasia e respirar devidamente; diga-se que, adormecido que fosse, amiúde começavam os pesadelos com as referidas criaturas, nos quais, não bastasse a sua visão onírica, vinham ampliados com a aflição de as pernas não obedecerem, ou só muito lentamente e com grande custo se movimentarem, assim tornando cada vez difícil a fuga e mais próxima de mim a maldade que me esperava: ser comido por um gigante ou um ogre, ou transformado em lesma ou couve por bruxa ou feiticeira.

Vezes outras era o ensinamento da religião que a minha avó, normalmente também ao deitar, me ministrava, falando-me mais de pecados e dos diabos que por eles me levariam ao inferno, do que das virtudes com que os anjos me fariam ascender ao céu. Quando eu morresse! Ou seja, ainda pequenino e já era confrontado com a inevitabilidade da morte.
Já aqui referi, mas arrisco repetir, que a minha avó me contava que aos Pastorinhos de Fátima tinha a Senhora mostrado o inferno, abrindo um fundíssimo buraco no chão e incitando as três crianças a por ele verem as chamas e o Belzebu e os seus acólitos nelas fritando as almas; e enquanto mo contava, minha avó, de olhos postos no chão, estendia para ele os braços e abria-os lentamente como que a abrir nele enorme fenda, enquanto me dizia «Estás a ver, Antoninho?» Que me lembre, eu, se não via o amontoado e martírio das almas pecadoras, o medo que me então me acossava fazia-me encostar todo, abraçando-as, às pernas da minha avó, e era exatamente como se também eu, tal como os Pastorinhos mas agora pela mão dela, igualmente beneficiasse da infernal visão.
Estes episódios da minha infância e meninice provocaram-me uma boa dose de medo do escuro, de tal modo que ainda hoje, apesar de vencido o medo, me desconforta o negrume em locais onde me encontre privado de, ao menos, uma réstia de iluminação.
Mas o que me tolhia completamente eram as conversas sobre o fim do mundo: estava-se nos alvores das armas atómicas e, a propósito disso, a minha avó sentenciava que se cumpriria, e talvez por um desses dias, a profecia segundo a qual, tendo o primeiro “fim do mundo” sido de água – referia-se ao dilúvio dito universal – o próximo seria de fogo. E o meu avô, então com pouco mais idade do que a que é hoje a minha, quando à mesa a refeição era temperada com tal conversa, de mãos postas, dizia «Quem me dera assistir ao fim do mundo!»
Perante a minha expressão de terror ao sentir os rissóis ou o empadão recheados com o tema, a minha tia mais nova procurava aligeirar o ambiente, dizendo aos circunstantes, mas voltada para mim «Não tenham medo, que o fim do mundo é a pouco e pouco, que ela acaba à vez para cada pessoa.» Tem graça que me lembro que, mesmo pequenito, eu percebia o alcance filosófico do que ela dizia.

O certo é que o tema tem voltado à baila, ainda que eufemisticamente mas de modo realmente assustador, a propósito da guerra na Ucrânia, travada com potentes e sofisticadas armas imensamente letais e, como se isso não bastasse, acicatada por leviana guerra de palavras, em que uns referem malevolamente a caixa de fósforos com que lhes será possível detonar o arsenal apocalítico, e outros insultam insensatamente aqueles, uns e outros indiferentes às chamadas à razão que lhes fazem aqueles dos seus próximos ainda providos de razoável grau de sensatez.
Os primeiros, porque terão alma de pirómanos, estão convencidos de que não perecem no fogo que ameaçam atear; os segundos, porque são velhos, talvez se não importem, tal com dizia o meu avô, de morrer assistindo ao fim do mundo como quem contempla a derradeira girândola de um fogo de artifício universal.
Sinto-me, pois, de certo modo retornado aos meus pavores de antanho, se bem que agora, mesmo que ciente de que o apocalipse é possível, ainda é mais forte a convicção de que tal não acontecerá.

Analisando a desgraça que se abateu sobre a Ucrânia, e sem dúvidas quanto ao principal, mais cínico e desumano responsável, tenho muitas dúvidas de que, de entre todos os responsáveis deste mundo mais próximos dos acontecimentos, haja algum a quem não caiba alguma quota parte de responsabilidade. E não sou só eu a pensar assim, pois tenho ouvido e lido muito boa, moderada, isenta e sensata gente a dizer o mesmo, concretizando, chamando-os pelos nomes, os que acham responsáveis.

Só espero, e desejo, que a lição que nos está a ser ministrada, desta vez seja bem aprendida.

Esclarecimento:
Na minha última publicação, o título “GUERRA E PAZ” vinha antecedido da expressão “di”, a qual nada tem a ver com o título sendo fruto de mero lapso.”


António Mota-Prego
Guimarães, 29 de março de 2022

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