Tradições - antigas e novas

Sob a perspetiva da etnografia, a tradição revela um conjunto de costumes, comportamentos, memórias, rumores, crenças, lendas, música, práticas,

doutrinas e leis que são transmitidos para pessoas de uma comunidade, sendo que os elementos passam a fazer parte da cultura.
É assim que a mais vasta enciclopédia informática, a Wikipédia, define tradição, definição esta que é idêntica, mais palavra menos palavra, à que consta da Grande Enciclopédia Luso Brasileira da Cultura, do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e ao simples, mas prático e eficiente, Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora.

A pesquisa teve a ver com a parte que se refere a “prática, costume ou comportamento.”

Fui à procura da definição para ver se, em algum desses indispensáveis elementos de consulta, constava algo que me informasse sobre quanto tempo é necessário para que uma prática, costume, ou comportamento possa ter-se como tradição.
É evidente que costumes de séculos, tais como, na nossa terra, as Festas Nicolinas, a Procissão do Corpo de Deus, a Feira Franca integrada nos festejos em honra de S. Gualter, constituem incontestáveis tradições.
Mas práticas mais recentes, algumas iniciadas há apenas algumas, por vezes poucas, décadas, e, mesmo, há só alguns anos, podem ter-se já como tradições? Ou serão apenas início de tradições?
Aliás, em comportamentos coletivos de há poucos anos, mesmo meses, vejo já a marca de uma tradição, se não instalada, ao menos incipiente.
Comportamentos tradicionais houve que se extinguiram, pura e simplesmente, ou, ao extinguirem-se, deram lugar a outras práticas costumeiras, talvez proto tradicionais, bem curiosas.
Tenho por incontestável que todos os comportamentos coletivos periódicos, festivos e comemorativos, de mais afastada ou próxima periodicidade, já existentes quando nasci, constituem tradições que ninguém contesta serem-no.

Mas, dada a minha antiguidade, também ouso afirmar que muitos comportamentos sociais, constantes ou repetidos com notória frequência, iniciados após a minha irrupção neste mundo, poderão ter-se como tradição.
Das mais remotas, persistente desde há pelo menos cinquenta anos até à sua extinção, há pouco mais de dez por motivos alheios à vontade dos ativos tradicionalistas, era a tradição de os frequentadores da Cervejaria Martins estacionarem, frente a ela, os seus automóveis, em extensa segunda fila, paralela à dos que os tinham precedido e estacionado regularmente. Daqui resultava merecida publicidade à simpatia do estabelecimento e excelência dos seus petiscos, que ainda hoje são reconhecida tradição da casa.
Como é sabido, na torre da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, sita no largo de seu nome, existe, à meia altura da sua aresta norte, uma gárgula, fonte de ancestral curiosidade, de muito mas frustrantes análise e estudo, uma vez que, sendo bem visível o que é, continua a incerteza sobre qual seja o seu significado.
Pois mandava a tradição, antiquíssima, filha do não menos ancestral conceito de pecado até há pouco vigente, que se não olhasse para o dito ornamento. Que se não olhasse ostensivamente, pois, disfarçadamente, não faltava quem para ele atirasse olhar furtivo e, tradicionalmente – lá está – malicioso.
Por outro lado, desde que turistas afluem a Guimarães como as abelhas à colmeia, é ver os guias a conduzir densos grupos deles até à referida aresta da torre, apontarem o guarda-sol ou o pau da bandeirinha, com que se identificam, para a gárgula e encetarem para ela esquisita explicação. Então os turistas, em espetacular síncrono movimento, levantam a cabeça, atiram o olhar para a curiosa escultura e, reparando no acrobático ato por ela representado, de modo igualmente síncrono começam a rir, olhando concupiscentemente uns para os outros. Tenho reparado que, normalmente, quem mais ri e concupisça são as turistas.

Finda a aludida tradição de estacionamento em segunda fila, uma outra, do género, surgiu com o desenvolvimento dos transportes urbanos e proliferação das respetivas paragens de tomada e largada de passageiros.
Da maioria destas paragens, que a lei determina deverem estar livres para acostamento dos veículos de transporte público, nasceram três tradições: uma, a de serem utilizadas para aparcamento de viaturas particulares; outra a de as de transporte público não encostarem nas respetivas paragens, ainda que se não encontrem ocupadas por viaturas particulares, e, finalmente, a de as autoridades zeladoras do cumprimento das regras de estacionamento e paragem dos falados veículos, terem em maior conta a tradição, filha do povo, do que as leis, obra de um pequeno punhado de beneficiários de motorista e, por isso, desconhecedores da tradicional necessidade aparcamentativa.
Outro tanto se diga dos locais próprios para cargas e descargas, objeto igualmente de tradicional uso por muitos que nada têm a carregar ou descarregar, e tradicional desuso por tantos que, podendo servir-se desses locais para os seus fins próprios, carregam e descarregam a partir do centro da via, ainda que se mostrem aqueles completamente livres.
Aliás, registo e tomo a devida nota que, recentissimamente, têm vindo a ser remarcados, com apelativa cor amarela, os falados locais de paragem, assim se chamando a atenção para também esses são de tradicional uso privado e costumeiro desuso público.

Tradição absolutamente nascente, por prática reiterada desde o último verão, é a de, no Toural, grupos de exímios tocadores de concertina, cavaquinho e viola, acompanharem límpidas e agudíssimas vozes femininas e tonitruantes vozes masculinas, em sucessivos viras e malhões, formando espontânea arena onde, durante quase toda a tarde, quem quer, e sabe, se entrega aos volteios dançados de tais ritmos e canções, aqueles e estas de verdadeira e antiquíssima tradição.
Este é mais um aliciante, não tarda que tradicional, para locais e forasteiros.

Guimarães, 13 de fevereiro de 2023

António Mota-Prego
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