“ANARKHOS”

Sem, neste presente, qualquer afeição por uma praxis estruturada predominantemente na harmonia de direitos individuais e conseguida,

não pela subordinação a preceitos impositivos, mas por aquilo que, hoc die, se vai vulgarizando de forma algo difusa como em, ou de, rede, a verdade é que e sem ir mais ao fundo no processo da espécie humana, sobremaneira a antropologia e a etnosociologia não nos dão pistas para, no imediato do nosso sistema civilizacional, a próxima admissibilidade duma tal sociedade.
Claro que o termo em título é por demais e sobretudo na sua corrente concepção de prática política, redutor para a amplitude que o parágrafo anterior pode compreender. Destarte sem se pretender aprofundar mais esta última afirmação, por o necessário laconismo deste texto, o que se pode pensar é que, em qualquer democrático contexto político futuro, na sua utopia, esse tipo de organização pode representar o paradigma de sociedade ideal.

Sejamos porém pragmáticos; actuais.

Antes porém e no habitual descarrilamento, mais uma vez Nietzsche. E sem se o subscrever, até por a crida conjunturabilidade e elitismo da suas posições filosóficas, há porém nele duas deduções que, por mais próximas e desamparando outras expedições mais rebuscadas pelo fecundo mundo das ideias, merecem alguma atenção. A primeira e já invocada nestes artigos, a do super homem; isto é, ao desenvencilhar-se do teísmo, o homem torna-se livre e capacitado para, através do conhecimento, ir potenciando as suas capacidades para aquisição de informações cada vez mais explicitas e tendentes a, segundo aquele filósofo, angariar maior vontade de poder. Vontade de poder essa que será a aqui segunda invocada dedução e entendida, por ele, como a forma única de causalidade. Sem pretendermos adensarmo-nos mais nos prolegómenos destas suas deduções, ficámo-nos apenas pelo seu sentido direccional, interpretando-as segundo o que parece mais concernente com os saberes destes dias em que nos encontramos. Assim e quanto à primeira, será notório que, perdida a submissão compulsiva a uma explicação teológica do Universo, os reconhecimentos humanos adquiriram outros e infindos horizontes, permitindo avanços que estão à vista de todos (quão relativamente chegado temporalmente e o, no entanto, já tão distanciado Galileu Galilei, que e quebrando grilhões, mesmo abjurando perante os carrascos, teria ficado com a sua no atribuído sussurro do e pur si moeuve). Neste sentido, portanto, o salto que foi dado e progressivamente prosseguido corresponde a, em relação a mentalidades anteriores, um verdadeiro homem novo, liberto de teias de aranha paralisantes, obscurantistas e aberto para o conhecimento científico: um, pois, homem superior. Depois, quanto à segunda, mais complexa na sua formulação e, quiçá, na leitura que dela se intente fazer, a de causalidade única. Ainda que não se acolha que esta reside numa qualquer vontade de poder, porque, desde logo, no presente, não faz qualquer sentido ser esse o instinto determinante de tudo, a dedução é, no entanto, aliciante. Neste particular e aceitando assim a categoria de uma causalidade única, a verdade é que para ela têm de entrar, e terá de comportar, a síntese de todos os saberes humanos hodiernos (mesmo assim, todos não são bastantes para uma cabal explicação do Cosmos, ou de qualquer dos processos tidos por parcelares em que este ocorre, por o que se deve ter em conta as limitações daí decorrentes; sendo que, as próprias palavras em que se exprimem essas concepções sofrem de igual circunscrição). Termos em que, por conseguinte, a causalidade única que hoje pode estar sob a mesa é a da dinâmica do processo material massivo: o movimento, a evolução, seja ela progressiva, regressiva ou em outro qualquer sucedente (repetindo, que os vocábulos movimento, evolução, dinâmica e similares significantes, estão condicionados ao conhecimento, aos limites humanos de apreensão do efectivamente existente, que não ao que ele é realmente). Evolução que, entretanto e para a biosfera assenta na cadeia reprodutiva: na reprodução.
Mas deixemos Nietzsche e voltemos à oração inicial.

Como se vem escrevendo aqui e de há tempo a esta parte, a espécie humana é, por uma questão de própria sobrevivência, gregária. Dos tempos da recolectagem e caça, ao nomadismo e sedentarismo, o grupo, a família, foram sempre o centro imediato e estruturante do quotidiano. Com o adensamento de elementos nessas células e sem deixar de a última ser a pedra basilar de conexão no prosseguimento posterior, o crescimento desmembrado dela e pelo menos por estas bandas, deu origem a clãs, em que ainda haveria uma suposta proximidade sanguínea, depois e aglutinando estes, as tribos, que se englobaram em povos (de recordar as 12 de Israel), estruturas organizativas rudimentares que, no prosseguimento, se foram complexando e aos poucos centralizando num poder que, posteriormente, se fixou em urbes, na sua extensão a espaços mais amplos, dependentes ou associados e que com o decorrer dos tempos se foram transformado em reinos, ou impérios. Resumidíssima recensão que, numa admissível regra com muitas excepções, nos mostra uma arquitectura formativa de base parental, ainda que e com o decorrer dos séculos muito, muitíssimo, fluida, mas cuja lógica subjaz até bem depois da Idade Média. Depois a crescente densidade populacional nos espaços, as culturas específicas que neles se foram gerando (com a miscigenação de etnias que em muitos deles ocorriam e já tinham estado na formação dos reinos), foram acentuando distinções e, aqueles reinos, já não tão longe quanto isso, evoluíram para estados que, ainda mais recentemente, se aglutinaram em federações e, ou, uniões. Num, portanto, constante distanciamento de laços de conotação que se vinham verificando e parcialmente substituídos por outros mais latos.

Esta esquemática síntese é de capital importância para a percepção do confronto com a cultura urbana dos nossos dias, pois esta e na sequência do neoliberalismo em que a revolução industrial se tem vindo a concluir, em que estamos, conduziu a um exacerbamento do individualismo; a um progressivo desenraizamento de práticas familiares, nelas e nas dos antigos sucessivos, e seguintes, escalões grupais. Sucedendo assim e segundo parece uma aditada ruptura, cujas consequências ainda estão por precisar. Ora sendo a continuidade, a sequencialidade consequente, a determinante de todo e qualquer processo material, esta fractura pode não augurar nada de bom; no caso, do evoluir social que, tendencialmente, deveria ser progressista, poder ser o inverso, ou seja, regressivo. E embora de momento não hajam indicadores fiáveis que indiquem em qual dos dois sentidos essa evolução se está a processar, o certo é que as tensões entre o individual e o colectivo impositivo são já um fenómeno que todos os dias, nas mais diversas manifestações noticiadas, se apresentam aos nossos olhos. Com a agravante do abandono de imposições genéricas e abstractas a favor de listagens de prescrições cada vez mais precisas sobre quase todas as particularidades da vida individual, colectiva ou sobre os bens (fenómeno que pode advir do crescente número de especificidades - divisões do trabalho- e inovações tecnológicas - sofisticação das produções -, mas também, predominantemente ou não, duma acentuada intenção de tutela de tudo e de todos).

É, pois, neste patamar que se assiste a uma degladiação entre a pretensão do reconhecimento de cada vez mais direitos individuais em detrimento dos sociais (culturais ou autoritários) que os possam coarctar, ao mesmo tempo que se regulamenta sobre quase tudo, numa aparente tentativa de controle e disciplinação atentatória, castradora, daqueles e da liberdade da sua fruição. Ademais, a regulamentação é tão extensamente invasiva que o preceito de que o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém se tornou uma redundância, obsoleto, uma inverdade por a quase impossibilidade do cidadão saber, e entender assim, todas as esquisitices do amontoado legal que sobre ele impende; e igualmente serve de justificação para o eldorado burocrático.

Em que ficamos, portanto, individualismo ou submissão?
O que se está a passar com os Metadados é bem elucidativo!

Fundevila, 1 de Junho de 2022


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