PARA O JOÃO GOMES ALVES, QUERIDO AMIGO

“… olha o outono”.
Assim escrevi nestas páginas, no mais triste e doloroso dos meus dias, lembrando o que me fora dito num mês

de outubro de umas décadas antes, perante uma folha que naquele momento caíra de uma árvore em lento e ondulante voo.

Era jovem na altura, ainda na pujança da vida, e a frase não me despertou pensamentos relativos ao tempo por acontecer, tendo-a, isso sim, analisado na poética que continha, dada a tenra idade de quem a proferiu e as circunstâncias em que o fez.
Há alguns anos, não muitos, sendo-me presente tema musical em cuja execução eu deveria participar, como participei, encantou-me o poema que dava alma à melodia e que me fez recuar àquela frase com que inicio, pois que, no seu espanhol de origem, começa o poema por lembrar que as pessoas se despedem, insensivelmente e pouco a pouco, do que fez sentido na sua vida, acrescentando, no verso seguinte, em apropriada metáfora, que isso acontece tal como às árvores, que em tempos de outono morrem pelas suas folhas.
Agora, imerso já no meu outono, penso para mim que, no outono, o que morre não são as árvores, mas sim as folhas que, uma a uma, se despedem das que vão ficando e estas das que deixam para sempre de com elas entoarem a melodia do vento. Isto porque, está provado, cada folha que se desprende deixa um vazio perene e insubstituível, até porque mesmo o despontar, primeiro, e depois o desabrochar das novas folhas, são estas outras, novas e diferentes, fruto das estações da vida que é a das árvores. As que caem, essas, não voltam mais.
Ontem, da árvore que ainda me prende, caiu mais uma folha, uma folha de particular recorte, daquelas de que passei a sentir, para sempre, a irremediável falta.
O Dr João Gomes Alves, o João, como ele e eu gostávamos que fosse tratado, desprendeu-se da árvore que comigo partilhava e isso fez-me sentir como se fosse eu a única folha restante na ramagem. Um vazio amargo e imenso à minha volta, é a sensação que me invade.
Eu e o João não nos frequentávamos assiduamente, mas era para mim sempre um motivo de grande regozijo privar com ele. Gostávamos um do outro e, sobretudo, eu gostava muito dele.
Pela sua afabilidade, pelo tom sereno com que dialogava e argumentava mesmo na mais profunda e dura divergência, pelos seus modos cavalheirescos, pela sua bonomia que facilmente era traduzida pelo um sorriso cativante e por suaves gargalhadas, também pela harmonia das suas feições e da sua compleição o que me levava a dizer-lhe muitas vezes, com ironia, porque excessivo, mas com verdade pois assim era no vasto acervo dos meus conhecidos – João, tu és o advogado mais bonito de Portugal, por tudo isso e pelo muito mais que sinto mas não sei exprimir como ele merece, eu gostava muito do João.
Ele era, agora sem sem ironia nem exagero, um jurista de primeira água, doutíssimo no ramo de direito que mais apreciava, o Direito Administrativo, que teorizava e esgrimia com saber e modéstia identicamente raros.
Foi um cidadão exemplar e um vimaranense empenhado. Quase sem se dar por isso, mas foi. Méritos que lhe foram devida e publicamente reconhecidos.
Alguém, ao falar-me dele hoje, me disse que se lhe não conhecia ofensa feita nem ofensa recebida nem inimigo algum. O que condiz inteiramente com a memória que dele guardo e guardarei.
Porque morávamos na mesma zona da cidade, frequentemente nos cruzávamos ou fazíamos juntos parte do caminho de ida ou de volta.
Nesse caminho, como em todos os que ainda me será dado percorrer, jamais deixarei de sentir o vazio doloroso deixado por uma estrela que se apagou no firmamento do meu universo, que é como quem diz, na árvore que, por desígnio do fado em que entro, ainda me prende.

Guimarães, 23 de maio de 2022

António Mota-Prego
Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.


Imprimir Email