Um eufemismo chamado loucura

Perante a ignominiosa tragédia que, dia a dia, na Ucrânia, nos entra pelos olhos adentro, há quem arrume interiormente a questão dizendo que Putin é louco.

Não, Putin não é louco: Putin é um homem mau, muito mau. Uma maldade sem limites na esteira de outros tantos homens maus que marcaram a história trágica dos povos. Muitos, como Hitler, morreram e foram derrotados, outros tantos permaneceram no poder até a morte os vir buscar ... e tiveram funeral de Estado.

Nunca, desde 1945, estivemos tão perto de um conflito bélico à escala mundial, como estamos hoje. Mesmo a crise dos mísseis soviéticos em Cuba (1962) parece uma brincadeira militar face ao que presentemente vivemos.
Homens igualmente maus, como Estaline, contribuíram para o derrube de uma besta maldosa chamado Hitler. E Hitler também teve, como Putin tem hoje, “justificações” para fazer o que fez: o malfadado Tratado de Versalhes (1919) e a humilhação dos povos germânicos. No entanto os homens maus entendem-se bem, falam a mesma linguagem, e o Pacto Germano-Soviético (1939) foi o culminar desse entendimento: Hitler fazia o que queria sem chatear o outro e Estaline procederia de igual forma. Antes de se “desentenderem” a União Soviética, à boleia do pacto Molotov-Ribbentrop, anexou territórios na Finlândia, Estónia, Lituânia, Letónia, Roménia e Polónia (que ainda hoje fazem parte da Rússia) sob o pretexto, em algumas das invasões, de defender comunidades amigas, igual à justificação agora usada por Putin na região de Donbass na Ucrânia e, igualmente, o pretexto de Hitler para a anexação da Polónia ou da Checoslováquia. O esquema mental dos ditadores não mudou: é o mesmo ontem, como o é hoje.
No entanto, a maldade e ambição de Hitler eram descomunais e chateou-se com o amigo invadindo a Rússia em 1941. Nessa altura a tenaz heroicidade do povo russo aliou-se à determinação dos europeus e, posteriormente, dos americanos. Nos despojos da derrota de Hitler desceu sobre a Europa, como disse Churchill, um homem bom, uma “cortina de ferro” que aprisionou vários povos na esfera soviética até ao colapso económico e o aparecimento de um homem bom e razoável: Gorbatchov, prémio Nobel da Paz em 1990.
Apesar de tudo que se passou para além da cortina de ferro, a queda de Hitler permitiu libertar a parte ocidental da Europa para a democracia e a liberdade. Caso contrário estaríamos, provavelmente ainda hoje, a estender o bracinho direito em direção ao céu pois, como disse Simone Weill, “faz parte da História oficial acreditar na palavra de honra dos assassinos”, especialmente quando se é dominado por eles.
À Ucrânia, país de gente determinada, corajosa e trabalhadora, entalada durante tantos anos do lado de lá da cortina de ferro, não lhe é permitido também hoje viver em paz e democracia de acordo com as escolhas livres dos seus cidadãos. E morrem por isso e sofrem por isso às mãos de um homem visceralmente mau.

Este conflito coisifica o horror, mas, como todas as coisas más, traz por vezes algo de higiénico. É higiénico perceber (mais uma vez) os inimigos das escolhas democráticas, os saudosistas da cortina de ferro e do poder soviético. Os países livres contêm em si mesmo quem odeia a liberdade e a democracia sem que, por isso, os encarcere e assassine, como está a acontecer, hoje, na Rússia, a quem se manifesta contra a indigna intervenção que, em seu nome, Putin hoje perpetra. É essa a diferença fundamental entre as democracias e os sistemas autocráticos, tantas vezes escondidos (conveniente) por trás de ideologias.
E a vida nem estava a correr mal a Putin. A sua maldade estava a fazer o seu caminho, através da ascensão dos extremismos na Europa, que ele financiou e financia, através do Brexit ou da insidiosa campanha de trolls russos que bombardearam a campanha de Hillary nas eleições que deram a infame vitória a Trump. O mesmo Trump que, uma semana antes da intervenção russa, definira Putin como um “pacificador” e considerava “genial” o reconhecimento por Putin das zonas de Donestk e Lugansk. Entretanto, pelos vistos, já mudou de ideias, mas continuará, certamente, a venerar Putin e a sua forma “genial” de resolver os assuntos matando, de forma indiscriminada, quem lhe faz frente.
Será higiénico, igualmente, perceber que a Europa acordou para a dura realidade que hoje enfrenta. Enquanto a Rússia gasta 20% do seu PIB com defesa, a Europa fica pelos 3%, confiando no destino. É higiénico, e sobretudo corajoso, que a Europa não deixe a outros as responsabilidades militares da sua própria defesa, que não se inebrie em pacifismos enganadores que provocam violentos acordares. É higiénico que os mercados não fechem os olhos à indignidade que tantas vezes alimentam, que os países europeus se unam e levantem o rabinho do sofá, pois a defesa dos valores e da cultura ocidental não se faz apenas em conferências, mas, também, ou sobretudo, na capacidade de nos sabermos defender militarmente das agressões totalitárias que, mais tarde ou mais cedo, sempre aparecem.

O progresso e o bem-estar coletivo não se fizeram na alegria de o alcançar, mas, fundamentalmente, no sacrifício de lá chegar. E hoje, uma vez mais, é o sofrimento que convoca os ucranianos, mas igualmente os defensores da liberdade, a lutarem igualmente pela dignidade e pela democracia. Com sacrifício.
Estamos hoje gordos, pusilânimes na determinação de dar a vida pelos valores em que acreditamos, julgando que o nosso modo de vida é imutável e que nada pode já andar para trás. Mas pode. A maldade é intrínseca à espécie humana e não desaparece só porque achamos que deve desaparecer. A maldade combate-se, não só retoricamente, mas também com armas e coragem, como sempre aconteceu na história dos povos. É desagradável e angustiante? É. Mas haverá outra forma de a combater?

Rui Vítor Costa

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