Exemplo de força de vontade: «Fiquei surdo-mudo aos oito anos, de meningite»

É um exemplo de força de vontade, de empenho e de superação de adversidades. António Antunes Gomes, de 83 anos, é "surdo-mudo", mas essa condição não limitou a sua integração profissional e social e, acima de tudo, a alegria que exibe no relacionamento e no convívio com os outros. Foi na sede da Associação de Reformados e Pensionistas de Guimarães que a simplicidade com que mostrou um dos seus mais recentes trabalhos fez acicatar a curiosidade que deu origem a este texto. Uma representação em madeira do rosto de D. Afonso Henriques causou uma certa surpresa, ao ser retirada de um saco onde estava guardada à espera do olhar do público. A harmonia nos detalhes, o brilho que exibia e sobretudo a bondade que a sua habilidade colocou no sorriso do Rei Fundador sobressaíram inesperadamente no conjunto que mereceu o devido elogio.

O autor ouviu, sorriu e manteve-se em silêncio ao ser confrontado com as nossas inúteis e intempestivas perguntas, sem ainda sabermos da limitação que o impede de expressar-se oralmente. Lê e escreve com esmero. Mas,  na relação com os outros comunica sobretudo através de gestos.

Respondeu às questões que apressadamente colocamos num papel para esta entrevista com recurso a uma máquina de escrever, num depoimento que nos fez chegar e em que esclareceu, sem rodeios: "Fiquei surdo aos oito anos, de uma meningite".

As sequelas da doença e a pobreza da família e daquele tempo, no final da II Guerra Mundial, fizeram com que tivesse ingressado na Casa Pia, em Lisboa. "Estive lá até quase aos 18 anos. A Casa Pia foi a minha escola", assinalou, fazendo questão de elucidar: "mudo é uma pessoa que não consegue falar. Eu sou surdo-mudo, porque não ouço nem falo".

"Esta limitação por ser surdo-mudo, priva-me de algumas coisas na vida. Os empregados nos supermercados não me percebem. Por vezes, tenho que mostrar-lhes uma lista com a referência dos produtos que pretendo", salientou, acrescentando que tem de ir acompanhado pelos seus familiares quando precisa de ir ao médico. "Eles perceberem os meus gestos e falam por mim", apontou, ao referir que foi na Casa Pia que aprendeu linguagem gestual e a trabalhar a madeira e outros ofícios tradicionais, como a alfaiataria, profissão que abraçou ao longo da sua vida e que começou a exercer aos 18 anos, "cujo primeiro emprego surgiu na casa Damião, no Largo da Oliveira".

"Os meus familiares e amigos compreendem os meus gestos e os meus sons, mas por vezes as pessoas têm que ser bem expressivas nos lábios para eu entender. As pessoas que me conhecem conseguem ter uma conversa comigo por gestos", referiu, fazendo questão de sublinhar: "Sou casado. Tenho uma filha e um filho, que ouvem e falam. A minha mulher também ouve e fala. Eu vivo na freguesia da Costa, em São Roque".

Os seus trabalhos em madeira abrangem diferentes motivos relacionados com a história e com o quotidiano de Guimarães. "Já fazia alguns trabalhos, mas um dia tive uma ideia ao ver algumas peças de artesanato. Fiz alguns trabalhos para mim e depois pediram-me para fazer uma exposição. O interesse das pessoas levou-me a continuar", frisou, não conseguindo precisar o tempo que demora a fazer as suas peças. "Quatro dias ou mais, depende da paciência", escreveu.

 Texto publicado na edição de 20-04-2022, do jornal O Comércio de Guimarães.

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