Clube de leitura
A leitura de um livro ainda continua, para muitos, a ser um prazer. Comprar um livro, deixálo repousar na pilha de publicações,
sentir como ele olha desesperadamente para nós, resgatá-lo da espera e ler, é uma atividade analógica sem par. O ato de ler um livro, apesar de tão antigo, chega a ser, nos dias em que nos encafuamos nos ecrãs digitais horas a fio, verdadeiramente revolucionário e redentor.
Ler um livro é um ato profundamente solitário, e, ao mesmo tempo, uma imensa festa coletiva, em que outras vidas, outras abordagens e pensamentos, entram dentro de nós, como se de uma boa conversa se tratasse.
Há livros que se leem de enfiada tal o gosto em entrar neles e a dificuldade de deles sairmos, outros leem-se a conta-gotas no meio de outras leituras, pois não têm propriamente um enredo que se esqueça no tempo. Nesta última categoria está o Nexus, escrito pelo filósofo israelita Yuval Noah Harari, convertido (justamente) numa estrela, que vou lendo. Um livro sobre a inteligência artificial e, fundamentalmente, sobre a forma como ao longo dos últimos anos nos deixamos enredar (muitas vezes de forma voluntária e incauta) nas redes de informação e lá produzimos uma pegada que nos caracteriza e identifica, transformando-nos em vítimas vulneráveis de alguém que quer controlar a nossa opinião sobre as coisas, ou simplesmente vender-nos sabonetes. O livro é uma aflição. O livro fala das coisas que nos controlam, dos algoritmos que nos levam a pensar, a agir, que nos condicionam, reduzindo-nos a seres amestrados em função daquilo que, ao longo destes anos, fomos permitindo que a rede de informação global conhecesse. O livro não se fica pelos mecanismos de controlo atuais, mas percorre na história outras formas de controlo e influência das massas, se bem que faz notar que as ferramentas tecnológicas disponíveis tornam, hoje, tudo particularmente mais eficaz e irreversível. Nós sabemos disso, desconfiamos disso, mas confrontarmo-nos com isso é, deveras, angustiante.
E o livro fala-nos de coisas que são óbvias quando sobre elas refletimos. É fácil perceber que todos os feeds e as ideias neles difundidas nos tendem a radicalizar, pois o que é radical, ao contrário do bom-senso, é aquilo que (verdadeiramente) chama à atenção.
A sociedade digitalizada das redes e tecnologias de informação penetrou na nossa vida de forma irreversível. A quantidade de informação de qualidade que hoje existe e que podemos consultar sem sair de casa, a facilidade de chegar a lugares sem termos de perguntar “ó chefe onde fica a rua tal?”, a possibilidade de, em segundos, ouvirmos aquela música que estava alojada algures no nosso cérebro, ou escolhermos um restaurante no meio de nada, chega a ser mágico. Mas essa magia tem naturalmente um preço. É importante percebermos isso e sabermos até onde estamos dispostos a pagá-la. Navegar na internet está-nos a oferecer perigos como a dos navegadores de antigamente. Eles arriscavam a vida no mar, nós, por estes dias, arriscamos a nossa liberdade, a nossa individualidade.
A sociedade em que vivemos levou uma volta tão grande nas últimas décadas que as coisas simples que fazíamos se tornaram estranhas e inusuais. Recentemente aconteceram-me duas coisas dessas, extraordinárias. Uma delas através de um convite para participar num clube de leitura com alunos do secundário, na outra, um amigo ofereceu-me uma garrafa de champanhe acompanhada de um cartão escrito pelo seu próprio punho.
No clube de leitura estive à conversa com adolescentes que olham os livros com o mesmo embasbacamento que eu os olhava na adolescência e (espero) que ainda tenho. Partilhei com eles a minha fascinação pela novela Noites Brancas de Dostoyévsky, que eu li quando tinha a idade deles. Aprendi imenso com as perspetivas que partilharam por livros que já li há anos e que eles liam agora com inegável e devotada satisfação.
No cartão que o amigo me escreveu, com a oferta, fui decifrando na sua letra difícil, encavalitada, inclinada, aquilo que as palavras me diziam e toda a amizade que aquelas palavras escritas transportavam. Magicamente. Não foi propriamente a graça da oferta que me entusiasmou, mas o cuidado de a descrever, de forma humorada e ligando-a a uma curta conversa que tivemos.
Gesto antigo, também este.
As coisas que dantes valiam a pena, continuam a valer hoje. Não é pela tecnologia que não as repetimos. É, apenas, por um estranho esquecimento.