RESSURREIÇÃO

Felizmente tenho alguma literacia informática e posso dizer que me entendo razoavelmente com a modernidade, comunicacional e não só.

 

Utilizo com suficiente mestria o computador e o telemóvel, e, no que a este respeita, tanto para efetuar e receber chamadas e enviar ou ser destinatário de mensagens, como para muitas das outras tarefas que os telemóveis permitem e que fazem deles uma espécie de computadores de trazer no bolso.

Não tenho, porém, qualquer experiência na domótica, que, dito de um modo muito superficial, consiste na possibilidade de, mesmo remotamente, se interagir com todos os elementos relativos ao funcionamento dos aparelhos domésticos e do conforto numa habitação; ligar e desligar eletrodomésticos, regular a intensidade e tipo de iluminação, estabilizar a temperatura interior como melhor aprouver, abrir e fechar cortinas e persianas, trancar e destrancar portas, etc, etc, etc.

Na minha casa, se quero que a luz de um aposento acenda, tenho de o fazer em conjunção com o saudável exercício físico de levantar a anatomia com que me sento, fazer funcionar aquela com que ando, acertar e acionar o interrutor da fonte de luz pretendida. O início da operação, não raro é acompanhado de um gemido de esforço, este fruto da quantidade de tempo por que, desde que irrompi no Universo, carrego toda a minha anatomia.

Acontece que acabo de sair de uma experiência da domótica, pálida, é certo, ao pernoitar num moderníssimo hotel.

Inaugurado há pouco, apesar de dotado de vários requintes, está a praticar preços promocionais, acessíveis à classe média-média a que julgo pertencer, o que vim a saber, lá está!, por informação lançada no meu telemóvel por entidade que terá detetado na atmosfera cibernética a minha intenção de viajar para a localidade pretendida: a cidade de Léon, em Espanha, cuja catedral e extraordinários vitrais foram o chamamento para a viagem.

De entre os tais requintes, o do funcionamento dos elementos do quarto – luzes da cabeceira da cama e dos pés da cama (!!!), do armário da roupa, do quarto de banho, luz ambiente, abertura e fecho de cortinas e estore, ar condicionado – tudo era anunciado como integrado em rede domótica. Por isso, ao ver que mal abri a porta o quarto se iluminou gradual e suavemente, e não vendo, a um primeiro relance, qualquer tipo de interruptor ou manípulo acionador de energia elétrica, fiquei convicto que os comandos, tal como à presença, obedeciam à voz. Logo bradei «apagar luzes» e, como elas continuavam acesas, lembrei que teria de falar espanhol, considerando a proverbial incapacidade dos espanhóis (à exceção dos galegos) para a compreensão de outras línguas, nomeadamente o português, proferi pausadamente «apagar luces», e as luzes apagaram-se, o que foi causa da admiração, e algum espanto, meu e da minha “colega de quarto”.

Querendo, então, subir o estore, pois era dia, prossegui o comando vocal, logo em espanhol, dizendo pausadamente «ascender celosías”, e as persianas não subiram! Usando o dicionário do telemóvel, proferi o comando com várias palavras sinónimas daquelas, e a frustração manteve-se, até que percebi o fenómeno.

A iluminação que espontaneamente se fez à entrada fora só momentânea, havendo que introduzir o cartão magnético com que abrira a porta do quarto numa bem disfarçada ranhura para que a rede elétrica do quarto funcionasse, e tudo se acendeu de novo. O comando de apagar aluz e o ter-se ela apagado fora só coincidência.

Continuando sem me aperceber de interruptores ou similares, voltei aos comandos por voz, primeiro em espanhol e seguidamente em inglês, mas novamente sem qualquer efeito.

Após detectivesca observação, lá descobrimos uns pequenos painéis de vidro negro, atafulhados de muito ténues, pequeníssimas e azuladas luzes de indicação de acionamento dos vários locais a iluminar, bem como das cortinas, estores e ar condicionado. Só que os respetivos símbolos, pela sua sofisticação, obrigaram a grande esforço de “perspicobisbilhocácia” a fim de decifrar qual deles tocar para fazer funcionar o quê, e, além disso, como descobri, um toque curtíssimo correspondia a uma função e um toque mais prolongado correspondia a outra e, após porfiada experimentação lá conseguimos aprender o funcionamento de tudo aquilo.

O aposento sanitário (digo assim para evitar a escolha entre “quarto de banho” e “casa de banho”, não escondendo a minha preferência pela nortenha primeira hipótese face à sulista segunda) era digno do requinte geral, mas, à primeira vista, omisso quanto a um elemento que considero importantíssimo, o qual, todavia, pelo que vou vendo e sabendo, tem sido objeto de incompreensível discriminação: o bidé!

Ainda pensei que por razões estéticas estivesse embutido algures no aposento, pois espaço para ele não faltava, havendo um qualquer local no painel de ativação elétrica que, pressionado, o fizesse sair, lenta e silenciosamente, de algum esconderijo disfarçado atrás de uma das placas de mármore que revestiam a parede, ou até, ascendentemente, do chão; mas não!

Porém, há pior do que o aposento sanitário ser destituído de bidé: é estar ele repartido por dois locais, facto com que me tenho confrontado em casa de alguns amigos franceses e num ou outro hotel.

É o caso de haver um compartimento só para a sanita, o que até tem o inconveniente de não haver senão paredes para o utente olhar, ficando assim sem ajuda para passar aquele tempo de espera que só não ocorre em caso de aflição, estando os demais elementos sanitários – lavatório, duche e/ou banheira e, raramente, o bidé – em outro aposento.

Alguns detratores do bidé argumentam que é ele substituído pelo duche, face ao hábito que se enraizou do banho diário. Discordo!

Imaginemos o efeito intestinal de uma gastroenterite, em que o paciente não tenha outra solução final senão o recurso à lavagem: aí terá o paciente que, sorrateiramente, entreabrir a porta do módico aposento, espreitar que não haja alguém no percurso até ao outro cómodo sanitário, efetuar até ele a viagem com a anatomia afetada descoberta, segurando a correspondente roupagem para que, além do mais, o não faça tropeçar, e, por fim, obviar à situação…; sem dúvida pouco prático, complicado e, até, com risco da privacidade.

A verdade é que, sendo o bidé uma invenção francesa do séc. XVII, pois dele há notícia em documento de 1710, não deixa de ser paradoxal que seja a França o país que mais o discrimina.

De objeto indiciador de estatuto social e propiciador de higiene, a peça ultrapassada, anti-higiénica e desnecessariamente ocupadora de espaço, há argumentos para todos os gostos, tanto a seu favor como contra ele.

Eu sou a favor.

Aliás, registei que está a ressuscitar a instalação de bidés, agora de última geração, estética e funcionalmente apelativos, com evidentes vantagens para o seu uso, alguns deles até informatizados, funcionando automaticamente à adequada aproximação, outros com comandos que permitem o utente colocar-se sobre ele e acioná-los facilmente, tanto voltado de frente como de costas para a parede, caso este que implica alguns dotes de adivinhação, ou até contorcionismo, quanto ao alcance e manipulação da fonte de água.

As mais modernas técnicas, que não implicam ocupação de espaço porventura necessário para outras peças sanitárias – um dos primeiros argumentos dos “anti”, surgiu já, com epicentro no Japão, aquilo a que os brasileiros, com a sua inventiva para adaptação do léxico, chamam de “chuveirinho”; trata-se de um pequeno dispensador de água, multimodal, pois pode-se-lhe regular a intensidade e o tipo de fluxo, que pode ser modo de chuva ou de jato concentrado.

Esse “chuveirinho” é abastecido de água através de uma manga fixada a uma torneira na parede, de comprimento bastante para a aproximação à peça a lavar, e de formato adequado a qualquer tipo de lavagem, algo como a embalagem “WC Pato” (passe a publicidade).

Como sucedâneo, já não está mal, mas eu continuo apegado ao bidé.

Ainda que só raramente lhe colha a utilidade, para mim é como a estrada de S. Torcato; não a que a utilize com frequência, mas conforta-me saber que está lá.

 

Guimarães, 06 de junho de 2023

António Mota-Prego

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