Mês de Maio

O mês de maio traz-me sempre lembranças de um tempo que cobre o da minha meninice e primeira juventude, quando os meus atos, que

nem sempre a minha vontade, se cumpriam através de ordens emanadas de avó e tias, pessoas que admito já suficientemente conhecidas dos meus simpáticos leitores, os quais que, ao que julgo, são a sua maioria absoluta. Essa maioria absoluta está, até agora, atrevo-me a dizê-lo, isenta de qualquer percalço ou, pelo menos, de grave crise suscetível de a evaporar; assim me dê a fortuna imaginação e veia algo mais que sofríveis, para ir colhendo a vontade, por parte dos leitores deste vetusto e simpático semanário, de gastarem alguns minutos do seu precioso tempo a ler as colunas que, modesta, mas gostosamente, vou preenchendo.
Maio, portanto, para mim um mês especialíssimo. Vejamos:

Ao princípio era mesmo só o sacrifício – se não fosse sacrifício por certo de pouco ou nada valeria – daquilo a que impropriamente lá em casa chamavam de “novena”.
Do 145 da rua de Santo António à igreja de São Pedro, no Toural, era uma corridinha; ora a par de quem me levava, normalmente a avó, ora a passo trôpego, como se estivesse embriagado, puxado pela mão dela prendendo poderosamente a minha, a avó à frente com ar de inabalável determinação, o neto a seguir, de cabeça baixa, beiço descido e olhos voltados para a biqueira dos sapatos, postura só alterada quando um puxão mais forte me causava tropeço de pés e quase a morte por golpe de coelho, quando a cabeça com o puxão se me atirava repentinamente para trás.
Durante a cerimónia, além de murmurar algo parecido com as orações que compunham a reza do terço, ia observando os santos e santas que ornamentavam as paredes laterais, tendo sido grande a minha admiração quando deixei de ver a figura de que mais gostava, que se chamava Santa Filomena, e enorme o meu desgosto ao saber, como a sábia avó me explicou, que aquela senhora deixara de ser santa.
Porquê? perguntei pesaroso, Não tens nada com isso! foi a resposta, o que me fez pensar que certamente a santa teria cometido algum pecado até então desconhecido, ou, pior ainda, teria cometido um ror de pecados maiores que os que, a Santa Madalena, se disse terem sido atribuídos por São Lucas evangelista [Lucas, 8:2] e que, apesar deles, foi e continua a ser dona e senhora de canónica santidade.
Ora, na ausência da imagem da Filomena – agora já só podia pensar Filomena – eu passei a gastar bastante tempo a olhar para o teto da igreja, pelo que reparei numa frase nele inscrita, que diz o seguinte: Et tibi dabo claves regni coelorum.
Perguntei à avó o que significava aquilo, e ela respondeu-me que era latim. Está bem, retorqui, mas o que quer dizer? insisti. Não sei, cala-te e reza! foi o dito e o comando.
Comecei, então, a tentar eu traduzir a frase, e, olhando à sonoridade das palavras, admiti que aquilo significava algo como E a tíbia do diabo cabe no ranho do celeiro
Fiquei espantado com tão estranha afirmação, mas tratando-se do diabo seria natural que, estando-se na igreja, lhe prendessem uma parte da perna num pedaço de matéria suja e, se calhar, nela lha tivessem prendido para sempre para que não andasse por aí a insinuar pecados, arranjando umas tantas filomenas como aquela por que me apaixonara.
Muito mais haveria a contar, e possivelmente ainda contarei, sobre a idas à novena, que afinal se tratava do “Mês de Maria”, coisas como, com o entrar na idade liceal, a falta de vontade de participar na celebração se foi desvanecendo e transformando em alegre desejo de o fazer, face à afluência de colegas minhas a quem eu achava bastante graça; os encontros e conversas que isso proporcionava que tivesse com elas; o aparecimento do meu avô para caminhar comigo até casa, no final da cerimónia e da conversa com as amigas, conversas que ele observava com ar prazenteiro, pois nessa altura eu adiantava-me à minha avó e ia sem ela, para poder escolher o local que mais me convinha atento o supracitado interesse; os alegres gritos e ziguezagueantes voos das andorinhas, acabadas de chegar, e muito mais que, tal como o acabado de dizer, poderá vir a ser tema de uma crónica futura.
Como terminaria, quando na escola primária, redação que me mandassem – e nunca mandaram – fazer sobre o mês de maio, termino agora, dizendo: gosto muito do mês de maio!

Guimarães, 09 de maio de 2023

António Mota Prego
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