Da hipocrisia

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Cada vez mais somos, as ocidentais e as também nelas europeias, sociedades fingidas.


Fingimos que o antropoceno não tem influído progressivamente no decurso das alterações climáticas do processo planetário... e tem influído.
Fingimos que não estamos em guerra ... e estamos.
Fingimos que não há mais guerras ... e há-as.
Fingimos que as nossas sociedades gozam de um bem-estar universalizado ... e não gozam.
Fingimos que vivemos em plena democracia ... e não vivemos.
Fingimos que o interesse colectivo é o leitmotiv da prática política ... e não é.
Fingimos que o sistema financeiro global é completamente seguro ... e não é.
Fingimos que não há outras alternativas a este estado de coisas ... e existem.

Fingimos, fingimos, fingimos e para qualquer lado para que nos viremos o fingimento está presente. E nisto de o listar fiquemos, para já, por o que vai acima, que esse rol afirmativo já é demasiado abrangente para quem vivência a realidade presente pão pão, queijo queijo e por isso sofre, como o poeta, duas angústias (a do existente e a do fingimento), sentindo com isso uma aversão raivosa de tristeza incomensurável.
Eh! Sabendo-se como se sabe que as utopias não passam de utopias, no entanto, o mesmo se pode dizer das distopias. E todavia são estas últimas que provocam o smog que paira e recai sob todo o espaço ocidental, ainda que este seja uma parcela menor da crosta terrestre e demograficamente só pese cerca de um quarto dos que a habitam (verdade que andou séculos sonegada e que, nelas, ainda custa a admitir e deixar de presumir o inverso). Mas aqui, nele, ao fingimento, acredita-se que o assumimos acordados. Acordados! Talvez? Mas essa fingida lucidez woke está nelas cada vez mais direcionada para atomizações específicas e que não permitem visualizar o que é essencial, e objectivamente estruturante, no concreto do quotidiano social que se pretenderia que fosse progressivamente melhor. Pior, os media das várias áreas e as redes sociais, ou similares, potenciam exponencialmente essa desagregação, fomentando um clima de acentuada exasperação sobre pequenas particularidades comportamentais que, aparentemente, são passíveis de maior ou menor condenação, mas que, na realidade, não são, ou não serão, ultrapassadas, e muito menos eliminadas, nesse contexto do seu isolamento. Mais, exploram até à exaustão essas ocorrências isoladas que, notícias, passam rapidamente a bombos de festa servidos enquanto a atenção sobre elas não se cansa. Mas é esse o guião do filme que permanentemente nos é exibido segundo a segundo, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, semana a semana, mês após mês, ano a seguir a ano e que, pela sua fera persistência, já se introduziu no dia a dia como elemento duma cultura de fingimento que dá importância vital a situações inferiores e de mais ou menos breve transitoriedade. Ou que, não o sendo, mas mais velhas que Matusalém, por as razões mais diversas e assentes na referida cultura, só agora merecem ser esquartejadas e esventradas em lavadouro público, exibindo escumalhas e excrementos nauseabundos.

Numa deriva exemplificativa e para esta última conjuntura, os crimes sexuais de membros da igreja católica. Desde há séculos, para ambos os géneros de vítimas e de abusadores, glosados em diversas artes e assunto frequente da má língua popular ou de círculos mais fechados, ou familiares, denunciados e calados, quase sempre estiveram presentes em avolumada extensão. Inclusivamente e no circunscrito desta península ibérica, perante a Inquisição, nas Visitações ... e não só. Mas a verdade é que perante essa circunstância nunca caiu o Carmo e a Trindade. Só agora e com atraso em relação a outras igrejas do mundo católico, neste rectângulo à beira mar implantado, igualmente, se viu o despoletar do que era sobejamente conhecido, reconhecido e admitido. É certo que mais vale tarde do que nunca, que o que ocorreu e ocorre é inconcebível, dramático, inqualificável e criminoso. Mas porquê tantos anos a aceitar que tudo estava nos conformes (e ensina o refrão, quem cala consente), para só agora, repete-se, ser servido a ferver numa espécie de surpreendida indignação subordinada ao mais virulento marketing. Enfim e nesta colação, fiquemos por aqui.
Mas há mais! O que demonstra a que ponto a insinuação do fingimento as atingiu. Para tal desçamos outra vez ao campo do particular e, agora, mesmo ao individual. E restringimo-lo à nossa sociedade pátria por uma questão de observação directa.

Assim, quem nela não finge?
Finge-se juventude.
Finge-se estatuto social.
Finge-se bem estar.
Finge-se o ser-se individual.

Ou seja e explanando: é um não se querer aparentar a idade que se tem, onde todos os meios são permitidos para se parecer na flor dela e ter uma aparência sempre jovem, tantas vezes correndo riscos imponderados e situações desconfortáveis; é um querer assumir pertença a um estrato social que não corresponde, prosapiando e usando sinais exibicionistas que o alcandorem a outro aspirado nível, com fortes probabilidades de afectação da desejável estabilidade vivencial; é o fazer de conta que se leva a melhor vida quando não é assim e, portas fronhas, a miséria do quotidiano assume proporções desagradáveis e, quantas vezes com crescente frequência, insuportáveis, com resultados negativos que influem nos relacionamentos próximos; e, finalmente, é o querer-se realizado isoladamente, no vazio de uma existência que não aporta nada a um futuro mais promissor para a espécie gregária que consistimos e com a provável consequência duma reversão civilizacional.
Enfim, é o fingir o que elas não são e o que solitários nunca seremos.

Fundevila,
22 de Março de 2023


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