A estonteante força da estupidez


Há mais de duas décadas atrás era relativamente fácil distinguir se uma pessoa, qualquer que ela fosse, pertencia ao clã dos estúpidos, ou ao clã dos inteligentes.

A estupidez de alguém dava-se ao outro sem grandes prolegómenos, a inteligência, mais escorregadia, demorava um bocadinho mais de tempo a perceber, mas percebia-se. Por outro lado, a estupidez ou a inteligência, nunca tiveram, para mim, a ver com cultura ou ausência dela. Confundir cultura com inteligência era então um erro comum. O acumular de informação, como a acumulação de capital, não tem interesse nenhum (pelo menos para os outros) se não for investido.

O século XXI, no entanto, confundiu os palcos em que cada uma das espécies se movimentava. O valor da fama substitui o valor da razão e as coisas complicaram-se, enevoaram-se. Começaram a surgir subcategorias híbridas que se afirmam mais do que as categorias puras. A inteligência estúpida ou a estupidez inteligente tomaram conta do palco público e vieram confundir, pelo menos em mim, a simplicidade da antiga dicotomia.

Mas essa possibilidade híbrida sempre existiu em potência. Qualquer um de nós, por muito que uma das características se afirmasse como predominante, é uma espécie de blended desses dois estados. Um sobrepõe-se, mas o outro está lá: sempre pronto a desabrochar.
As pessoas sempre inteligentes são profundamente maçadoras. As pessoas sempre estúpidas são igualmente cansativas. Optei, desde miúdo, por ecossistemas mais inteligentes, mas, em boa verdade, diverti-me superiormente quando a estupidez aflorava. A cretinice do “que se lixe, vamos experimentar” ensinou-me muita coisa que, de forma ponderada, nunca aprenderia.

O iluminismo do século XVIII veio trazer para a arena social a importância da razão. A força da inteligência por oposição à força bruta, o domínio da ciência sobre a crença. Nestes últimos séculos, apesar da abundância de pessoas estúpidas, valorizavam-se imenso as pessoas verdadeiramente inteligentes. Até os estúpidos as valorizavam. Einstein foi uma superestrela, recebida apoteoticamente nos Estados Unidos, fugindo ao regime nazi, mesmo que ninguém percebesse patavina da sua Teoria da Relatividade. Mas lá está: era uma pessoa inteligente e merecia crédito e fama por isso. Tão inteligente era que muitas das suas teorias – como as ondas gravitacionais - só conseguiram ser cientificamente provadas em 2017, cem anos depois da sua visionária formulação. Ao ler, recentemente, a autobiografia do genial químico e escritor Jorge Calado, Mocidade Portuguesa, percebi, pelos relatos da sua infância, o valor e reconhecimento social que homens como Almirante Gago Coutinho então gozavam, da admiração que ele granjeava nos cidadãos que com ele se cruzavam. Gago Coutinho era efetivamente um homem capaz e inteligente, que há cem anos empreendeu, com Sacadura Cabral, a mais louca viagem aérea entre Portugal e o Brasil e foram bem-sucedidos, apesar da estupidez aventureira de o terem feito. Marilyn, agora em voga com o filme Blonde, casou com Arthur Miller, um famoso dramaturgo norte-americano, muito provavelmente pela caução de inteligência que essa união lhe poderia trazer.

A inteligência só existe se for reconhecida e o reconhecimento tem hoje outros alvos. Se dermos uma vista de olhos pelas pessoas mais populares do planeta não encontramos grande inteligência. O Trump provou, sem margem para qualquer dúvida, que a estupidez, a atração preguiçosa pelo obscurantismo, o “é assim porque é assim”, constitui hoje uma marca imbatível. Trump, é justo dizê-lo, libertou a estupidez reprimida e envergonhada, alardeando-a com orgulho, tornando-a uma impante declaração de princípio. É, bem vistas as coisas, um revolucionário libertador. E é à volta deste tipo de personagens, sem nenhum contributo válido para o progresso do mundo, que se constrói o nosso dia-a-dia e o futuro das nações. Existirão, seguramente, mentes brilhantes, mas ninguém as reconhece. A estupidez apoderou-se, definitivamente, do palco mediático.
O domínio da estupidez é hoje um facto ineludível. E não falo apenas da estupidez estúpida – com essa posso eu bem-, mas fundamentalmente da que mais me irrita: a inteligência estúpida. A inteligência estúpida dos cancelamentos, do politicamente correto, das teorias da conspiração em que a negação da Covid, recentemente, foi uma das mais cintilantes causas.

Salva-se, por estes dias, o humor: uma das mais interessantes formas de inteligência. O humor é o último reduto para denunciar a estupidez, sempre difícil de perceber, sempre bem camuflada na realidade que ganha progressivamente a mesma folhagem que a estupidez tem. Só mesmo rindo é que se aguenta. Daí que o humor, e os humoristas, sejam hoje tão atacados e tão cancelados.

Ao escrever isto psicanaliso-me. Escrevo-o, pois, no fundo, tenho a mania de que sou inteligente. Então porque o escrevo eu isto, se me vou dessa forma enterrar, escrevendo-o? Porque entro eu neste pântano, quando julgo perceber que o triunfo da estupidez, como o triunfo dos porcos, no brilhante livro de Orwell, não foi mais do que uma reação jacobina à tirania da inteligência, ao mal-estar que ela convoca nos outros? Escrevo-o, pois, acima de tudo, prezo muito a minha estupidez particular. E é preciso cuidar dela. Nunca se sabe se ela não me será, mais do que a inteligência, profundamente útil no futuro próximo.

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