Ambiguidades democráticas

images/opiniao/rui_vitor_2018.png

Tenho já idade suficiente para ter votado, das primeiras vezes que o fiz, com a sensação libertadora de que o meu voto contava imenso.

Essa é a ideia básica e fundamental da Democracia.
Mesmo que seja irreal, essa sensação era muito entusiasmante para quem votava, e extraordinariamente legitimadora para quem era votado.

As coisas mudaram, entretanto. A ideia (errada) de que a Democracia é uma conquista adquirida levou a algum desleixo na participação democrática. Sermos bombardeados diariamente por sondagens e estudos de opinião ridículos como com quem gostaria de jantar? ou a quem emprestaria dinheiro? tornam a participação democrática numa espécie de reality show que apouca a política e molda os políticos na opinião acessória e rasteira. De repente, as grandes ideias estruturais para o país diluem-se no quem dá mais, na acusação torpe e sem fundamento ou mesmo na distensão vulgar de que os programas televisivos da tarde vivem.

Hoje assiste-se a um estranho paradoxo: quanto mais informação parece haver, mais confuso se fica.
A primeira vez que votei foi nas legislativas de 1983 e pouco depois nas legislativas de 1985. Em 1986 tive a oportunidade de assistir e participar numa das mais entusiasmantes eleições de sempre: as presidenciais.
Lembro-me de que no tempo em que não havia sondagens, ou as poucas que haviam eram informes e pouco fiáveis, mas havia a sensação de que Soares não passaria à segunda volta, estando atrás de Zenha (apoiado pelo PCP, pelo PRD) e de Maria de Lurdes Pintassilgo. A distância para Freitas do Amaral era enorme.

Eu era pelo Freitas do Amaral, mas gostava de Mário Soares, reconhecia-lhe um extraordinário mérito na consolidação da Democracia em Portugal. A luta contra o controlo soviético do país pelo PCP, foi feita, em grande medida por Soares, um europeísta convicto, um democrata. Votei no Soares na primeira volta com convicção. Votei no Freitas depois, com igual convicção. “Perdi” nas duas, mas confortou-me ver Portugal a caminhar para a integração europeia (havíamos entrado no início de 1986 para a, então, CEE) e a libertar-se da tutela militar que ainda então tinha a sua força, nomeadamente através de Eanes.
Por incrível que pareça estamos, em 2025, a tender para essa anquilosada tutela.

Recordo que a capacidade de Mário Soares em convencer os portugueses a darem-lhe a possibilidade de disputar a segunda volta, se deveu mais à sua espontaneidade como pessoa do que aos conselhos dos especialistas em campanhas eleitorais. Aquilo que ali estava era um homem, com virtudes e defeitos, e não um boneco.
Há, claramente, uma tendência para abonecar os candidatos, para que eles não saiam dum registo mais ou menos inatacável. Daí que uma das grandes respostas da campanha tenha, para mim, sido a de Montenegro: “o senhor não tem mais nenhuma pergunta para me fazer?”.

O desabafo deve ter posto os cabelos em pé aos spin doctors da AD, mas permite ver o homem.
Qualquer que seja a conclusão pessoal que da afirmação se tire. Eu compreendi-a.
A previsibilidade dos debates em que os candidatos não arriscam nunca a serem eles mesmos, pelo contrário, até se transfiguram naquilo que não são só para caberem no boneco, o escrutínio levado até à mexeriquice, a horda de comentadores que dão notas para apaziguar a preguiça geral de quem não quer ver os debates, tende a transformar tudo numa “opinião” de Tik Tok, de uma frugalidade assustadora, dando, assim, o palco ideal aos idiotas para quem tudo é mau, tudo é corrupto, tudo é medo. À exceção deles, claro.

Posso não votar já com o entusiasmo de outrora. Já não levarei, certamente, pela mão, uma das minhas filhas, para lhes inculcar, desde pequenas, a nobreza do gesto. Mas voto sempre, com a convicção absoluta de que a Democracia, apesar de tudo, tem a sua essência naquilo que a escolha individual representa.
E quem sabe, um dia, poderei ser levado pela mão de uma filha, ou de um neto até, a votar. E enquanto isso acontecer é bom sinal. É sinal de que ninguém se arrogou no direito de decidir, por mim, aquilo que eu deveria pensar.


terça, 13 maio 2025 17:24 em Opinião

Imprimir