Confissões

A época do Natal é imbatível para quem tem a ventura de o celebrar em família. Desde miúdo que sou um fã do Natal, sobretudo porque o Natal me trazia presentes...

e os primos. Tenho, confesso, com a religião católica - a minha – uma relação fundamentalmente comercial: porto-me bem e quero o devido retorno. Tão simples quanto isso. Por outro lado, sempre me encantou, a acalmia emocional com que o Natal investe as pessoas. A ternura, a atenção ao próximo, os desejos sinceros de felicidades, surgem, no Natal como borbulhas em adolescentes, visíveis e brutais, mas que se diluem rapidamente no tempo, como o acne. Não acreditar em Deus é apenas um pormenor, um pormenor meu, que nada afeta a magnífica e redentora história do menino nascido em Belém para salvar o mundo.

Lembro-me com uma certa saudade de quando me confessava. Na época de Natal era praticamente obrigatório confessarmo-nos. Havia ali uma espécie de Relatório e Contas do pecado que me encantava. Ora senhor padre fiz de mal isto e aquilo e, depois, simplesmente uma redentora absolvição e uma penitência traduzida numa aritmética de ave-marias e padre-nossos. Reparei, com o tempo, de que não havia ali uma tabela estruturada, um algoritmo, já que para os mesmos pecados tinha, com diferentes padres, distintas penitências. Mas sentia-me indubitavelmente leve após a confissão. Nunca laborei demasiado nos meus pecados, nos meus pensamentos íntimos, eventualmente impuros, pois sentia que isso me iria causar problemas. Entregava o trivial e recebia o trivial, sem qualquer sermão exaustivo. Arreliei a minha tia, arreliei a minha mãe, disse palavrões, menti quando disse que dei dinheiro a um pobre, quando, em vez disso, fui comprar mais cromos daquela coleção em que me haviam proibido de continuar a torrar as minhas poupanças. Mas saía da confissão, sempre, com uma leveza extraordinária e, algumas das vezes, com um halo de santidade invisível (mas magnífico) por cima da minha cabeça. E sentia-me bem assim. Contudo, quando as confissões eram em grupo era mais difícil manter a santidade. Algum colega mais atrevido provocava-me o palavrão e o halo lá se ia, puf. No entanto, como os bons fiscais de estacionamento, sentia que havia da parte de Deus uma tolerância de meia-hora em que poderia pecar sem ter de tornar à confissão. Tenho saudades dessa leveza, da simplicidade que uma religião nos pode dar, da nossa existência ser, tão simplesmente, um caderno de contabilidade antiga, com as impecáveis colunas do deve e do haver e sempre com a bondosa possibilidade de perdão, de voltar com as contas a zero.

Na religião católica dividiam-se os pecados em pecados mortais e pecados veniais. Dos mortais tratava, sem perdão (assim se esperava), o sistema judicial. Dos veniais, da inveja, da mentira, da maledicência, tratava, com tolerante bondade, a religião. Hoje, provavelmente, já nem isso. Esse tipo de pecado já não existe: o pecado virou afirmação da personalidade.
É-se parvo e é-se intriguista não por qualquer deformação de caráter, mas por formação de caráter. Transformamo-nos na sociedade do cada um é como é. Uma sociedade inconfessável em que as pessoas dizem “ponto” para iluminar o seu discurso verbal, para nos dizerem que não querem ouvir, só querem afirmar. Para quando a “vírgula” e o “ponto e vírgula” no discurso oral? As conversas fenecem na estenografia moderna da afirmação pessoal. Sem pecado algum.
Como pode haver pecado num país que se transforma alegre e progressivamente num imenso bingo? A educação, a saúde, o futuro dos jovens, fenecem na incompetência de quem nos governa, mas o cidadão anseia apenas pelo novo cartão da sorte. Aquele em que António Costa distribuirá o prémio eventual. Um país que não procura a sorte, mas espera, como um viciado em raspadinhas, a sorte. Linha! Ora são 120€ para aquele senhor ali ao fundo. Bingo! Ora são 240€ para aquele casal à minha esquerda. Num país em que, na realidade, o verdadeiro pecado – capital e irremissível – é achar que o Ronaldo e os “seus problemas” são a consagração do patético.
Se me confessasse hoje, teria eu a capacidade de simplificar os meus pecados em palavras, atos e omissões inteligíveis como outrora o fiz?

Não sei. Confesso apenas que gostaria de me concentrar mais no futuro do que no passado. Só isso. O passado é já a frase anterior. Olhar, então, para os dias e para a mulher que amo e verbalizar: dois pontos, mudar de linha, travessão. Tornando assim interminável aquilo que é, dizem, finito.

terça, 27 dezembro 2022 09:41 em Opinião

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