A maior felicidade



Calhando-me escrever a escassos dois dias do núcleo duro natalício (expressão que uso pela sua modernidade), ou seja, a véspera e o dia de Natal,

seria imperdoável que o tema não estivesse de acordo com o apogeu da quadra, e esta me não inspirasse algumas reflexões.

Como e quando terei eu feito a passagem do Menino Jesus para o Pai Natal? Provavelmente a questão põe-se a todos os que, como eu, foram testemunhas de uma tal transformação na autoria das prendas que, quando ela radicava no Menino, eram monopólio das crianças.
A lembrança da minha primeira prenda de Natal radicará nos meus três anos e recordo nitidamente que as coisas se passaram assim:
Eu, já não bebé, era ainda criança de muito fácil transporte ao colo, pouco menos tenrinha que o Menino Jesus, diferençando-me dele não tanto pelos cerca de três anos a mais que dele iria ter durante a noite, mas sobretudo pela intensidade do moreno da minha pele, pela negrura e indómito do meu cabelo – um chamado traque à direita. Menino engraçado, mas feínho, diziam de mim, ignorando os dizentes a profecia que me tinha feito a tia do Porto que, ao ver-me recém-nascido, sentenciara – Este menino ainda há de ser muito lindo. A minha mãe chorou, não se sabe se de alegria ou de desgosto.
Correria, pois, o mês de dezembro do ano de 1947, dormia eu no quarto das tias, perdido em imensa cama de casal, ser minúsculo protegido dos altos precipícios laterais do leito por dois travesseiros, um de cada lado. Desde sempre naquela casa diferençava-se o travesseiro da travesseira; aquele era muito comprido, estendendo-se de um ao outro lado da cama, sendo a travesseira aquilo que continua a ser atualmente.

No dia 24 do mês em causa, foi o que todos sabem: sapatinho posto à noite para de manhã estar acrescido de prendinha. Nesse primeiro Natal da minha memória, a prendinha foi um barco de guerra feito de “folheta”, como se dizia da folha de latão muito fina. Uma canhoneira foi, pois, a minha primeira prenda de pacífico Natal. Sem necessidade de presépio, nem de árvore, nem de lareira. Sapato, Menino, canhoneira e pronto: já está!
Como eu não sabia para que servia a canhoneira, tentando descobrir-lhe os segredos rapidamente a estrancinhei, o que se traduziu também na estreia do meu tenro e moreno rabinho ao estalido de palma de mão ritmada e eficazmente brandida.
Entretanto, em tempos que não ultrapassaram os da minha ilusão natalícia, começou a pontificar o Pai Natal, facto que, não tendo eu ainda idade para perceber o percurso de vida do Menino Jesus, e porque então cada ano representava uma eternidade, imaginei que o Pai Natal não era senão o Menino Jesus que, entretanto, crescera e se tornara no bondoso velhinho.
Temos, portanto, que não sei exatamente quando, nem como se passou de um para outro autor imaginário das prendas, no meu período de crença dos presentes vindos do Além.
Sei, isso sim, que a certa altura já se fazia Presépio com todos: musgo, vindo dos muros e penedos da aldeia, atapetando mesa propositadamente liberta da tralha de pratas, que para mim nunca passaram de folheta artisticamente trabalhada e que lentamente foram levando sumiço; caixa de sapatos que, coberta de musgo por fora e folhas de arbustos por dentro se transformava em cabana, e caminhos feitos de serrim de madeira pelos quais se semeavam as conhecidas figuras de barro com bicheza às costas, os Reis Magos e imensos rebanhos de carneirinhos. A particularidade é que, sendo o Presépio posto para mim, nenhum ou quase nenhum dos bonecos fora colocado onde a minha imaginação gostaria, mas sim de acordo com a matulona lógica dos adultos; desta divergência e respetiva manifestação, nascia uma tensão propícia ao que segue e passo a relatar.
Todos aqueles figurantes confluíam para a cabana, onde os esperavam os Personagens Maiores do Presépio, dos quais o maior era o mais pequenino, o Menino Jesus, que então eu já diferençava perfeitamente do Pai Natal. Era a este que a generalidade das crianças do meu círculo, e eu especificamente, já atribuíamos a prodigalidade da distribuição de prendas aos meninos (meninas é como se não existissem no léxico natalício de meados do século passado) que se portavam bem, que eram todos os ”de posses”, que os outros, se não tinham prendas, seria exclusivamente por se portarem mal.

Porque me causava impressão, e era para mim fonte de reflexão, a imobilidade do Menino, de bracinhos sempre levantados e abertos, e perninhas também um pouco soerguidas, uma mais que outra, resolvi, na minha reflexiva inocência, voltá-lo de lado, para descansar daquela incómoda posição. Acontece que, ao insistir em enfiar-lhe um braço sob as palhinhas, única maneira de o voltar, parti-lhe o braço.
O conhecimento adulto da malfeitoria levou, mais uma vez, a que o meu músculo nalgar fosse posto à prova, de nada tendo valido o bem-intencionado, e até a bondade, do ato de que resultara o grave traumatismo ao Infante.
Adquirido outro Menino Jesus, exatamente igual ao sinistrado, não me dei trégua sem que compensasse este pelo mal que lhe fizera, encontrando-lhe serventia para o Presépio que eu, no momento, não chegara a abominar por nem sequer ser ainda portador de um tal sentimento. Mas hoje sei perfeitamente que o meu rabinho, se fosse ser pensante, seria já sujeito de intensas abominações.

Fui ao armário dos remédios e com um pouco de adesivo fiz uma ligadura envolvendo o braço partido do Pequenino e o seu róseo corpinho, como se fazia a quem, por fratura, tinha de trazer o braço ao peito.
Um espelho pequenito, redondo, que a minha avó tinha sobre a cómodo do quarto foi colocado no meio do musgo, com o qual disfarcei os bordos do espelho, assim criando a ilusão de água. Um boneco de pescador coloquei-o junto à água fingida, como se estivesse a pescar e, no meio do espelho, pousei o Menino enfaixado.
Quando tal foi visto por quem mandava em mim (como todas as crianças da época, eu tinha dono) trovejou a pergunta – Que raio está o boneco a fazer no meio do espelho?
A medo, respondi sincera e resolutamente: Não é espelho, é um lago, e o menino é o Moisés!
Se me acharam graça, como ao relembrar o facto eu sempre acho, manifestaram-ma com um seco e pouco mais que sibilante – Está bem!
Mudando de registo, manifesto o meu enorme apreço pela magia do Natal, pela mais bela das ilusões que ele representa, pela mais doce e comovente das mentiras, talvez a única que verdadeiramente se justifique, mais ainda do que as piedosas.

Tive um tio, musicólogo e profundamente religioso, que imaginava o Paraíso como um local onde se ouvia sempre a mesma música e cada vez mais ela enlevava as almas.
Sendo a imaginação a mais portentosa e inigualável das faculdades humanas, gosto de imaginar o Paraíso como um sítio onde todos os habitantes são crianças, em constante véspera de Natal, permanentemente mergulhadas na indescritível ilusão da melhor das prendas por que anseiam: a felicidade, maior ainda do que alguma vez a pudessem desejar.

Guimarães, 20 de dezembro de 2022

António Mota-Prego
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terça, 20 dezembro 2022 18:04 em Opinião

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