A MINHA RUA DE SANTO ANTÓNIO


(Primeiro episódio; os seguintes estão ainda em rodagem)

 

Começo por manifestar a minha convicção de que a criação de uma extensa zona preferencialmente, insisto preferencialmente, pedonal, abrangendo a zona norte da alameda de S. Dâmaso, o Toural Nascente e a rua de Santo António, não só será mais um motivo de bem viver Guimarães, como resultará em não despicienda vantagem para o comércio local da zona. Essa convicção assenta, para além do que é o meu ideal de cidade, no exemplo que colho em outras cidades nas quais existem zonas pedonais como aquela que para a nossa cidade está em projeto. Faço votos para que não haja qualquer retração na vontade que tem sido manifestada de o concretizar.


Morador que fui na rua de Santo António desde os meus 18 meses de idade até que me casei, e a ela ter uma intensa ligação afetiva, o conhecimento que tive de que voltou a ser motivo de estudo a hipótese de cobertura dessa rua, fez-me pensá-la como poderá ser ela no futuro, mas, irreprimivelmente, a memória levou-me ao filme do seu passado, aquele passado que nela também foi o meu.
Em termos urbanísticos pouco mudou desde que dela me lembro, com exceção dessa monstruosidade que foi a demolição da casa Rocha dos Santos e do palacete de Minotes, para em seu lugar se construir o mastodôntico edifício dos correios, elefante branco urbanístico que para ali está sem finalidade prevista que se conheça, a não ser abrigar as pombas que fruem dos abrigos que a fachada lhes proporciona. Bem fazem as pombas que, ainda que irracionalmente, aproveitam para lhe cagar em cima (única expressão que ao imóvel se adequa), no que, embora a isso as pacíficas aves sejam indiferentes, merecem o meu apoio e, indo um pouco mais longe, a minha inveja bem como, ao que sei, a de muitos dos meus conterrâneos.

De resto, as diferenças mais notórias estão no trânsito, pois, pelo menos até à minha pré adolescência, a rua suportava dois sentidos, para além do estacionamento em um dos lados, e nos estabelecimentos comerciais, todos eles desaparecidos com exceção da Foto Beleza, devidamente adaptada à modernidade mas sem deixar de exibir o orgulho de atraente loja tradicional, e a menos excecional Ótica Vimaranense, que nasceu, tanto quanto recordo, ao aproximar dos anos sessenta do século passado, já com uma feição de modernidade que, sem destoar na rua, perdura até hoje praticamente inalterada.
A Foto Beleza proporcionou-me, a mim e aos meus mais próximos amigos e amigas momentos de exuberante hilaridade. Era assim:
Ali se faziam todas as fotografias tipo passe, desde às crianças para o seu primeiro bilhete de identidade, até às pessoas com sessenta ou alguns mais anos para aquele documento de identificação quando se tornava vitalício, passando pelos passes para as obrigatórias atualizações do bilhete de identidade ao longo da vida, assim como para variadas outras finalidades.
Presumo que por razões de publicidade, um exemplar de cada uma dessas fotos era afixado numa espécie de montra criada na folha direita da porta de entrada para a loja, ali se formando um extenso painel de rostos, dos quais os mais antigos eram substituídos pelos mais recentemente fotografados, de modo a que o mostruário tivesse uma aura de atualidade.

Eu e os tais amigos tínhamos como uma das diversões ir ver tais fotografias de entre as quais um grande número apresentava feições que o comum espírito crítico próprio dos adolescentes achava risíveis. Privilegiados eram os estranhos bigodes de muitos homens; e os de algumas mulheres.
Da varanda da casa em que vivia observava os transeuntes, dos quais destaco uma passante de diária regular assiduidade; era uma mulher sempre vestida de preto, cabelo penteado em popular toco na nuca, passo largo e firme e potente voz, apregoando, logo pela manhã, o “Comércio do Porto” e o “Primeiro de Janeiro”; a única mulher ardina que até hoje soube existir. E observava o “Quentinhas”, o Carneiro “Mééé”, o “Barroca” o “Barrumas”, o “Ramsés”, o “J.M. Quintanista”, o “Chula”, o homem do carvão e a mulher da carqueja (ou seria ao contrário, tanto faz), os vendedores ambulantes de lampreia e sável, o “Homem dos Sete Instrumentos”, o “Equilibrista”, enfim, um ror de figuras típicas das quais poderei um dia falar e explicar porque eram típicas.

Na minha rua de Santo António do passado lembro ainda que era repleta de moradores de que, por todos, neste momento relembro um apenas, aliás, uma moradora.
Senhora de meia idade bem conservada e arranjadinha, moradora poucas casas abaixo da minha, a quem sempre, mas sempre, ouvi as minhas tias e suas amigas de chá e canasta referirem-se como “a viúva”; de tal modo que, pequenito, nunca tendo ouvido ser ela referida de outro modo, cheguei a julgar que a senhora já nascera nesse estado. Também, pelo que tresouvia (assim como que ouvir de viés), fiquei com a ideia de que, além de viúva, igualmente nascera rica e nesse estado se mantinha. Será, por isso, a Viúva, assim com maiúscula, por, relembrada hoje, ter mérito para isso.
A Viúva era muito apreciada pelos homens, com quem, percebi, se relacionava facilmente e, por isso, era detestada pelas mulheres, em especial as que eram dotadas de homem seu (salvo seja! É linguagem da época).

A certa altura, eu já espigadote, começou a falar-se lá em casa – conversas sempre e só de senhoras – na filha da Viúva, pelo que ficou confirmada a ideia que então eu já tinha, de que a viúva haveria de ter tido homem próprio, pois a moral da casa determinava que, filhos, só produto de casamento. A menina aparentava ser da minha idade.
Acontece que as tias sempre tiveram a vontade de determinar a vida de quem as rodeava e, particularmente, a minha, tendo estabelecido uma eficaz rede de informação sobre os meus gostos, passos, percursos e amizades e, de entre estas, as femininas e mais próximas ou assíduas, que logo classificavam de namoros.
Assim, com pretextos vários e, sem dúvida, sempre com a melhor intenção de me encaminharem para um futuro promissor, foram dando cabo de algumas das minhas especiais amizades femininas, com pretextos espantosos, mas sempre, sempre, bem-intencionados.

Descobri, um dia, que, para elas, o meu futuro passava, o que velada, mas insistentemente tentavam instilar-me, pela filha da viúva, até porque era única, de carinha parecidíssima com a da bonita mãe e sendo adivinhável que lhe herdaria, além da fortuna, também a harmoniosa anatomia.
Só que, então, tendo eu já pretensões de diferente futuro, pus-me em bicos de pés e arrumei a questão com um argumento de peso: estando a menina tão talhada a herdar todos os atributos da mãe, o mais certo é que lhe herdaria também o de viúva e aí, alto lá! era desgosto que eu jamais quereria dar-lhe.
Como é próprio da minha faixa etária, acabei por ir longe de mais na minha rua do antigamente e fiquei sem espaço para falar da que gostaria para futuro.
Não decidi ainda se apreciarei ou não a ideia da cobertura da rua; mas os que gostaria, isso sim, é que fossem criadas condições para o seu repovoamento habitacional, assunto para que tenho a pretensão de ter algumas ideias, que exporei logo que para tal suscitado ou em eventual debate público que para o efeito venha a ser promovido.

Guimarães,22 de novembro de 2022
António Mota-Prego
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terça, 22 novembro 2022 16:36 em Opinião

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