Preços



Há sempre uma crise, tão inevitável quanto os dias que ela caracteriza e habilita. Desde miúdo que não ouço outra coisa.

Da crise do petróleo até à Covid, da dívida soberana à guerra da Ucrânia, há sempre um motivo para se usarem adjetivos pesados, para os preços dispararem, para o rendimento baixar. E a crise é sempre notícia. Dá-se assim relevo noticioso ao permanente e não ao excecional.

Não vou, ainda assim, falar sobre coisas importantes como o preço do pão ou do gasóleo, mas sobre a cultura, sobre o acesso a ela. Preocupa-me claro que o bijou tenha disparado de 11 para 17 cêntimos, e que o gasóleo consiga ser mais caro que a gasolina. Mas paciência. Tenho que comer menos pão e usar menos o carro: ambas decisões contribuirão aliás para eu melhorar a minha forma física, ou pelo menos para não a piorar. Há que tentar ver algo de positivo nesta permanência.
Mas com crise, ou sem ela, há uma coisa que me irrita solenemente: o preço da cultura!

Quando saio da bolha confortável do Cineclube, irrito-me sempre. Dois bilhetes de cinema, um para mim e outro para a Ana, para ver a fabulosa interpretação de Emma Thompson em “Boa sorte, Leo grande”: 15 euros! Só não gritei ladrões pois não saberia contra quem vociferar e o filme foi mesmo bom e mesmo original. O que me acalmou.
Acho que me viciei em cinema porque muitas vezes o vi: era acessível. Apesar de não ter uma mesada particularmente generosa, o dinheiro que gastava para ir ver umas quantas sessões não me fazia entrar em default financeiro. Era barato ir ao cinema e os cinemas estavam, por essa altura, cheios de pessoas e não cheios de pipocas. Dessa forma pude engolir dezenas de comédias italianas, dezenas de êxitos de Hollywood, longos filmes bíblicos, o Marcelino Pão e Vinho, algumas cópias já gastas de filmes de espadachim, e, numa noite particularmente especial, ver igualmente O Touro Enraivecido do Scorsese, e, com dezasseis aninhos, ter a brutal epifania de perceber a diferença entre filmes e Cinema. Se o cinema estivesse aos preços de hoje, com a mesada que tinha, nunca poderia ter feito essa magnífica descoberta. Limitar-me-ia, como qualquer adolescente, a “piratear” a Netflix e a achar que cinema era aquilo. E não é. O cinema é propósito, é partilha, é entrar naquela realidade bidimensional e habitá-la tridimensionalmente sem óculos. O streaming não possui magia nenhuma.
O preço de uma sessão de cinema é absolutamente escandaloso. O cinema sempre foi um escape barato e esse trunfo popularizou-o de forma extraordinária em quase todo o século XX.
Com muita xaropada é certo, mas com obras primas que nos eram servidas, em tardes ociosas, ao preço de um croissant e de um café e não para fazer concorrência a uma meia dose de bacalhau à Zé do Pipo, numa tasca competente, como acontece agora. Vou ver o último filme do Clooney, ou comer uma bacalhauzada? Decisão difícil, sem dúvida. Por isso os cinemas estão vazios. Ainda por cima enchem-nos com publicidade e trailers absurdos, ao contrário do bacalhau que se nos apresenta sempre pronto e percetível. Há uns anos quando ia ver um filme do Bergman passavam imagens de um filme do Truffaut que habitaria mais à frente aquele espaço. Agora não, vou ver a elegante Emma e convidam-me a ver o Adão Negro ou o Curral de Moinas, a assinar a NOS. Não há pachorra.

Nos livros é a mesma coisa. Ou nos desmultiplicamos em promoções, cartões e saldos acumulados, ou gastamos uma nota das verdes, para levarmos quatro livros que achamos importantes ler. É absurdo!
Devo às coleções Europa América, Unibolso, RTP, entre outras, a possibilidade de ter lido livros fantásticos ao preço de um pequeno almoço tomado ao balcão de uma confeitaria. Livros interessantes, sem as lombadas que impressionem as visitas de casa, é certo, mas que tinham as letras e as palavras impressas em papel barato. E nem por isso aquelas letras, aquelas palavras, deixavam de ser importantes e decisivas para conhecermos um pouco mais da vida, para viajarmos sem sair do sofá. Hoje é o contrário. A editora Guerra e Paz por exemplo tem uma coleção de “livros amarelos”, muito bonitos - A decadência da mentira de Oscar Wilde é uma pérola-, mas que esticam as letras e as palavras para fazerem de pequenos ensaios um livro caro, quando, parcimoniosamente, o poderiam ter editado por 5€.
A cultura já não é sequer para remediados (linda palavra esta). Aceder à cultura, sim senhor, mas com sofrimento financeiro.
Já nem falo do LP e do CD, confinados agora a uns envergonhados metros quadrados nos hipermercados da cultura, sempre a preços absurdos. A caixa que reeditou o Movement dos New Order, lançada em 2019, já esteve a mais de 120€. Queria muito comprá-la, apesar de ter o vinil da altura, pois ela encerra em si um conjunto de preciosidades de um álbum fabuloso e marcante, pelo menos para mim. Vejo agora, na escrita desta crónica, que a caixa (com apenas um vinil, dois CD e um DVD) já está a 75,98€ num desses hipermercados. Perco a cabeça ou espero até 2030 para a comprar numa feira de velharias, num ocioso domingo?

A cultura é uma palavra pesada e, por estes dias, cara. Haverá, no entanto, sempre, malgrado o preço, uma frase, um quadro, uma melodia que nos aproxima de nós mesmos, que nos abre a cabeça e nos revela a estranha essência de que somos feitos. Que nos faz perceber melhor as coisas, a existência e até mesmo entender o pornográfico preço dos bijous. Sim, essas joias feitas de farinha, água e sal.

Rui Vitor Costa

 


terça, 01 novembro 2022 10:04 em Opinião

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