Doutor Google



Perdi horas – que todas juntas dariam dias, ou mesmo meses – a discutir factos, quando sobre eles havia discordância.



Bastava que dois discordassem sobre uma coisa qualquer para se acender a fogueira da discussão. Sobre se um escritor era afinal do séc. XIX ou não, sobre se as nêsperas ou os magnórios são a mesma coisa ou frutos distintos, sobre se um particular golo do Paulinho Cascavel foi marcado ao Covilhã ou ao Aves, sobre qual seria aquela palavra mastigada pela voz do Ian Curtis, e a discordância era transformada numa acalorada discussão em que as partes se digladiavam para convencer a outra da sua razão. A cabeça afadigava-se a encontrar o argumento incontornável. Quando encontrava era a satisfação plena, quando não se encontrava ateava-se o fogo de uma discussão interminável, mas sempre produtiva.
O Dr. Google matou, entretanto, essa velha retórica. Alguém saca de um telemóvel e logo ali esclarece que o Billy Wilder não era afinal austríaco, nem americano, mas polaco. E o pessoal cala a controvérsia e faz scroll sobre coisas sem interesse nenhum ... alheando-se da vida real e do treino mental que uma boa desinteligência oferece, de borla. O Dr.Google mata hoje até a controvérsia mais banal. O Dr. Google é uma rolha!

A empresa Google nasceu em setembro de 1998, ancorada nas brilhantes mentes de Larry Page e Sergey Brin. Não sei se ainda nesse ano, ou apenas em inícios de 1999, aderi a um ainda simpático Dr.Google. Utilizava até aí o Yahoo. Troquei-o pelo novo motor de busca e ele foi tomando conta de mim também.
Em O Médico e o Monstro, a popular novela do escocês Stevenson, o afável Dr. Jeckyl transformava-se inapelavelmente no tenebroso Mr. Hyde que espancava e matava sem remorso algum. Eles habitavam o mesmo corpo e eram duas facetas opostas de uma mesma pessoa. O sucesso literário desta história deveu-se não apenas à ideia simples e genial do autor, mas igualmente àquilo que a estória em nós desperta: o medo pelo Mr. Hyde que há em cada um de nós, ou nos outros.
O Dr.Google transforma-se, cada vez mais, no seu Mr.Hyde, que nos condiciona e vigia incessantemente. Basta pesquisarmos alguma coisa que implique negócio que isso – sobre o qual ainda não sabemos se queremos - nos aparece sem cessar a cada página visitada.

A enorme popularidade do Google deve-se ao facto de ser um perfeito veículo para uma cábula legal e permanente para as nossas falhas de memória … ou até mesmo de cultura. Não há nada que ele não nos ajude a encontrar: seja a forma ideal de confecionar ameijoas à Bolhão Pato ou que o jovem faraó Tutankamon tinha de altura 1,67m.
Os jovens artesãos da minha geração que passavam mais tempo a fazer cábulas do que eu a estudar – só pelo gozo da malandrice, creio – estariam longe de imaginar que um dia tudo caberia num aparelho que, espante-se, até dá para fazer chamadas telefónicas.

Havia, no entanto, outros, menos dados aos trabalhos manuais, a quem o Dr.Google nunca seria útil. Era a malta que ia para os testes à espera que alguém lhe passasse a resolução, sempre com aquele ar aflito de fim do mundo. Estão infelizmente em vias de extinção e ninguém se preocupa com isso. Lembro-me que num teste de Física e Química tive tempo para fazer o meu teste e passar as perguntas para uma folha de rascunho que atirei pela janela para dois meliantes que me haviam solicitado a tarefa. Quando os questionei sobre se tinha corrido bem, disseram-me logo que não e repreenderam-me gravemente: não passaste a resolução, como querias que tivesse corrido bem? Ingenuidade a minha.
Há quem fique desesperado pelo facto de não se lembrar de um nome, de uma palavra.

Amofinam-se por achar que é a impiedade do tempo cronológico que sobre eles passa, mas não é. Trata-se apenas da falta de espaço disponível na cabeça que, tal como nos computadores, dificulta a pesquisa e a rapidez da coisa.
Quando eu era jovem lembrava-me de todos os nomes das pessoas que conhecia, não falhava. No entanto, quantas conhecia? Seiscentas, oitocentas, mil? Hoje já devo ter conversado com mais de 10 mil pessoas, talvez mesmo o dobro disso, ou o quádruplo quem sabe. Não me lembrar do nome de alguém não será por isso assim tão grave. Mesmo assim arrisco quase sempre: como está Sr. Santos? Não sou Santos, sou Martins. Desculpe lá ... Sr. Santos. Olá Dina! Não sou a Dina, sou a irmã. OK, irmã da Dina, tão bom rever-te.
Mas quando acerto no nome, quando acerto – nem que demore tempo – no enquadramento em que conheci a pessoa que tenho surpreendentemente em frente a mim, todo eu deliro, como delirava quando ganhava uma discussão antes do chato do Dr. Google aparecer.


terça, 06 setembro 2022 14:47 em Opinião

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