As férias do Avô

Hoje que sou Avô, gozo férias iguais às que gozam os meus netos e, para bem das minhas boas ações (que é o contrário de “para mal dos meus pecados”),

gozo-as com eles, privilégio que sei invejado por grande parte dos meus colegas de geracional parentesco.
Passo-as no Ofir, lugar de veraneio que pertence à vila de Fão, banhada pelo rio Cávado já em curso de largo e sereno leito, densamente povoado por gaivotas, patos bravos e gansos selvagens, em cuja margem assentei em busca de inspiração para esta crónica, na esplanada de um simpático estabelecimento denominado “PADARIA” no qual, ironicamente, a mercadoria forte não é pão, mas sim belíssimas tapas e bebidas a condizer em paladar e variedade, a que a cresce alegre convívio noturno.

Como se constata pelo que já escrevi e confirmará pelo que aí vem, valeu a pena.

Um Avô está na terceira geração antecedente ao neto o que, em termos de uma vida, são dois passos e, de memória, um instante de instante de segundo.
Por isso nada me custou o salto que agora vou dar até às férias, curtíssimas, mas com todo o sabor que elas proporcionam, que, há dois passos atrás, eu, neto, passei com o meu Avô. Com ele e com a tia Mimi, que os meus caros leitores da minha faixa etária terão conhecido em pessoa e os mais novos pelo que dela já aqui fui dando parte, sendo que esta tia, para o efeito, foi sobretudo a condutora do pai e do sobrinho, no dizer de ambos “o rapaz”, até à Póvoa de Varzim, então e durante os meus primeiros anos de vida, único local de vilegiatura por mim conhecido, bem como de um modo geral pelas crianças vimaranenses de então, de tal modo que numa redação sobre as férias, tema decidido pela nossa professora da escola primária logo à abertura da rentrée (francesismo que me permito pela sua total adequação ao facto que exprime), um menino da minha classe relatou que ele, os seus conhecidos e familiares que gozaram férias o tinham feito “nas Póvoas” (A professora explicou então a realidade das coisas).

As minhas férias com o Avô eram de uma semana, instalados numa pensão ao início da rua da Junqueira, com restaurante de portadas voltadas para a via, no qual, um dia, um automóvel mal-ensinado irrompeu, afortunadamente só com a frente e, com feliz pontaria, através de uma porta junto da qual a mesa se não encontrava ocupada. Imagine-se o susto dos comensais, eu incluído, e o ror de tempo por que a ocorrência serviu de tema que, como azeite, a partir da pensão se espalhou pela vila que a Póvoa então era, dizem-me que por vontade de quem a governava e por razões de vantagens fiscais.
O Avô sempre de fato e chapéu de aba revirada, que só desse tipo o vi usar, eu de calções com alças e camisinha branca que apenas tirava quando a tia me levava às ondas e a passar algum tempo no areal a brincar com pá e baldinho, não me lembrando de alguma vez ter tomado banho; a molha era só até dois dedos acima da vinca nalgar, e, mesmo assim, com sacrifício da desejada secura dos calções, apesar de arregaçados em rolo o máximo que podia ser.

O Avô não punha os pés, nem mesmo os sapatos, na areia e não comeu dos camarões que o Sr Romualdo uma vez ofereceu porque, disse, não achava adequado que se comessem animais com inclusão das tripas e todas as mais vísceras.
O Sr Romualdo era um outro veraneante que frequentava a Póvoa: por um qualquer acaso chegaram, ele e o Avô à fala, e ficaram amigos de férias, amizade que regavam apenas uma vez por ano, em demoradas idas e vindas na avenida dos Banhos, com intervalados descansos no banco corrido em cimento que acompanhava toda a avenida e cujas costas eram apoio, do lado da rua, de quem nele se sentava e, do lado do areal, suporte deste, pois que a praia da Póvoa de Varzim deve ser a única em que, para se aceder ao areal, é necessário subir e não descer …

O Sr Romualdo era um homem baixo, de cara e corpo arredondados, o rosto sempre sorridente, careca e sem dificuldade em acertar passo com o meu Avô, apesar de só ter uma perna, substituindo a que não tinha por muleta de madeira que, encaixada no sovaco do lado omisso de membro, lhe permitia velocidade e constância adequadas.
Também fiz um conhecimento nessa altura: um senhor, então de cabelo grisalho e sem barba, que me abordou cumprimentando-me de mão apesar da minha tenríssima idade, e muito meigamente me perguntou o nome, que só disse face à insistência da minha tia, que me explicou que aquele senhor era amigo dos meninos, de todos os meninos, e se chamava, ou assim era chamado, Catitinha.

É verdade: conheci-o ainda sem o ar de Pai Natal que poucos anos depois veio a adquirir, tendo eu, já pré-adolescente, privado de perto com ele em casa da família Lopes Correia, em Pevidém, gente amiga do meu avô e tias, que o acolheu algumas vezes no Natal e onde eu e os “minorcas” da dita família com ele jogávamos o “rapa” a pinhões. O Catitinha filosofava-nos estórias que eram o encanto da criançada.
Para mim, essas férias começavam verdadeiramente quando, a caminho da Póvoa, mas ainda as uns quilómetros de distância, a dado momento vislumbrava, com palavroso e movimentado entusiasmo, a linha marítima do horizonte, começando para o meu Avô quando constatava o meu entusiasmo e o bebia sofregamente.
Terminavam elas com um regresso em quedo, mudo e triste silêncio, no Renault que foi o primeiro carro que conheci como sendo “da família”, cujo modelo julgo ser um 4 CV e que, isso nunca esqueci, tinha por matrícula OR-12-16.

Tinha e tem; vi-o há menos de meia dúzia de anos na vila de Caldas das Taipas, na posse do seu atual proprietário, membro da família Amâncio, neto do patriarca Amâncio que foi o mecânico que sempre tratou da “saúde” do Renault, e tão bem tratou que ele ainda aí está pronto para uma curvas.

Vila de Fão, 29 de agosto de 2022

António Mota-Prego
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terça, 30 agosto 2022 08:43 em Opinião

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