Beijos

Em boa hora o Teatro Jordão, de que guardo tão boas memórias, foi restaurado, direi que belissimamente restaurado,

funcionalmente ampliado e colocado ao serviço da cultura e dos vimaranenses.
Há dias, passando frente a ele, estava um grupo de jovens que, tudo me levou a crer que sim, eram estudantes da Escola de Artes Plásticas e Performativas; conversavam animadamente, se bem que, dois de entre eles, um rapaz e uma rapariga, se beijavam apaixonadamente, como se, nesse momento, o universo fosse constituído apenas por esse par e o sentimento que os levou à intensa carícia.

Factos como este são, de há anos e cada vez mais, frequentes, em qualquer local da cidade, como de todas as cidades.

Lembrei-me então de que, quando comecei a frequentar o Teatro Jordão, nos inícios da década de 50 do século passado, o qual só muito raramente não funcionava como sala de cinema, beijos apaixonados só mesmo nos filmes se podiam ver: eram beijos muito simples, dir-se-ia beijos castos mesmo que beijos de amor, reciprocamente transmitido de lábios contra lábios, e é intencionalmente que digo lábios contra lábios, pois, como praticamente tudo no mundo, a arte de beijar evoluiu muito desde então até hoje.
Começando pelo princípio, direi que nessa minha meninice, quando ainda não havia classificação etária para os filmes, as adultas (as minhas tias) com quem eu ia ao cinema costumavam, nos filmes de cowboys, tapar-me os olhos quando a cena (e isso acontecia aos molhos) consistia no arranque das setas com que os índios, sempre selvagens maus, atingiam os seus adversários caras pálidas, sempre civilizados bons.

Igualmente mos tapavam quando ocorria um beijo desses, à antiga – poderia dizer “à dantes”, como agora se diz para pedir uma francesinha tradicional, ou seja, em pão dito biju e sem molho a cobri-lo. E como sabia eu que na pantalha um casal trocava um beijo de amor? Porque se ouviam prolongados assobios, tão prolongados quanto a dimensão do beijo e, ocasionalmente, por entre os dedos não sei se propositadamente entreabertos da tia mais à mão, eu conseguia vislumbrar o que se passava na pantalha, assim fazendo a ligação entre o beijo e os assobios.
Juro, de mão firmemente pousada sobre o peito no lado do coração, que durante muito tempo estive convencido que o que acontecia era que os assobios faziam parte dos próprios beijos.

Com razoável frequência ao cinema ia, mediante prévia combinação nesse sentido, uma amiguinha da minha idade, acompanhada dos seus maiores, amigos das minhas tias, menina essa que adquiriu a mesma crença que eu, essa de os cinematográficos beijos – que os adultos diziam de assobio – produzirem eles próprios os silvos que ouvíamos.
Após várias conversas sobre o assunto, com termos e raciocínios próprios da idade, então já aumentada numa proporção tão elevada quanto a percentagem do aumento relativamente à idade até aí decorrida, decidimos que, para tirarmos as dúvidas que entretanto se nos foram instalando, nada melhor do que fazer um teste experimental.
Experimentamos com todo o rigor, com demora bastante, não fosse o assobio apenas surgir ao fim de algum tempo, esfregando os lábios para o caso de a coisa ser como o som dos grilos, que nasce do esfregar das asas, mas a desilusão foi dupla e comum: não houve nenhum assobio e ficou-nos uma desagradável sensação de enjoo e, permita-se a rudeza mas elevada significância do termo, mesmo uma ponta de nojo.
Já mais adiantado em idade, na baixa, média e alta juventude, período que os ingleses tão pragmaticamente apelidam de teenage e portuguesmente pode traduzir-se por idade do armário, numa primeira fase, e idade da parvoíce, na fase seguinte – parvoíce inofensiva, há que precisar - fases a que não escapei e mau seria que tivesse escapado, ao cinema já ia desembaraçado de tias, substituídas por amigos tão ignorantemente sábios como eu e como eu idêntica e inofensivamente parvos.

Todos, com ou sem prévia experimentação, já sabíamos bem que os beijos não produziam assobios e, vá lá saber-se porquê, deixaram de todo de ouvir-se assobios na fase dos beijos que, então, já tinham evoluído para um pouco mais que os simples lábios encostados e eram precedidos de um sugestivo preâmbulo, espécie de dança facial, com aproximações e afastamentos, inclinar de cabeças para um lado e outro até que, por fim, o ósculo (acho que também a esses beijos se pode chamar assim), intenso e já algo intensamente temperado, acontecia.
Uma vez que nos filmes, muitos deles franceses, os casais se beijavam nas ruas, nas estações de metropolitano, nas praças públicas, quando a Tuna Académica da Universidade de Coimbra, a que pertenci, teve, a convite da embaixada portuguesa nessa cidade (embaixador Marcelo Matias pai) uma deslocação a Paris em 1966, ainda época de todas as proibições, parecíamos tolos a olhar para todos os lados sempre na expectativa de confirmarmos ao vivo, nos sítios que o cinema nos mostrava, a naturalidade da mais intensa manifestação pública de amor, carinho, desejo ou o que quer que impulsionasse o ato de beijar; mas para desilusão, creio que geral, só uma vez vimos, numa carruagem de metropolitano, que um casal de namorados trocou um rapidíssimo beijo, o que nem por isso deixou de provocar um certo frémito de admiração (acho que foi só admiração) nos que tal observaram.
Agora é o que se sabe, e ainda bem que é o que é: os beijos passaram a ter uma admirável e elaborada sofisticação na forma, uma extensão no tempo e um à-vontade público inimagináveis, sequer através dos filmes que se projetavam no Teatro Jordão até que ele se fechou a tudo aquilo para que servia.

Mas agora já não são necessárias as sessões de cinema no Teatro Jordão, para que nele aconteçam beijos de amor, tal como acontecem, floridos, na cidade, sem discriminação de modo, tempo e lugar, sinal de que o amor, a ternura, o desejo ou o que quer que os cause, beijos que, também eles, embelezam e perfumam o ar que respiramos, e, diz-me quem já experimentou, não raro extinguem o fôlego aos seus autores.

António Mota-Prego

Guimarães, 19 de julho de 2022
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