“HIPPEÎS” (Aristófanes)

 

Ultrapassados, deixados lá bem para trás e no seu tempo, “Os Cavaleiros” expõem uma tomografia social que, na perspectiva

dada pela sua denuncia, ainda infelizmente subsiste. Sobremaneira porque as sociedades são o que são e, de certo modo, pode-se dizer que repetitivas em persistências daninhas. Assim e neste frondoso teatro do mundo, de personagens como Paflagônio e, ou, o Salsicheiro ... “livre-nos Deus”.
Ou seja, de Cléon e de seus infindos clones actuais! Ademais destes derradeiros que, como nuvens de afrontosa tempestade, se vão adensando em ténebras e degenerando do gigantismo para o raquitismo mais extremo, ou vice-versa.

Porquê? As causas são múltiplas, mas há uma que se prende com o exercício democrático e que por estas nossas praias ocidentais da península ibérica parece bastante evidente: a da organização. Ou e melhor, a da desorganização.

É sabido que qualquer intenção de realização efectiva na acção política deve ter cabeça, tronco e membros. Isto é, deve ser devidamente planeada, decidida e executada. E que as duas primeiras fases são fundamentais para se atingir, e garantir, a obtenção optimizada do fim intencionado; sem se menosprezar a terceira que, entretanto, depende muito mais da verificação da concretização determinada (embora e para a dita optimização, no decurso da feitura possam, e devam, ser encontradas eventuais formas que a melhorem). Dito isto, parece que também será evidente que, quanto mais perfeitas e especificadas forem aquelas duas primeiras fases, menos campo se deixa para a subjectividade dos que intervieram, ou intervém, na concretização de todas elas. Isto ainda mais se, como devia ser numa praxis democrática, todas elas pudessem ser escrutinadas, em razão da proximidade, pela intervenção dos seus destinatários. Que a democracia é isso mesmo e não a pessoalização num iluminado, ou em vários, que concentrem nele, ou neles, o direito de conduzir o rebanho (fazendo definhar órgãos, que passam a meros dadores de bênção e subordinados à sua voz). Situação esta que mais se complica com maiorias eleitorais que, as mais das vezes, nem sequer correspondem à manifestação da generalidade da cidadania. E, assim, a representatividade tende para um parcialização que não augura nada de bom para o bem comum. Havendo ainda que somar a esta a não discussão especificada, e suficiente, dos programas políticos, por o que aquela é, e não na lógica da batata, uma longínqua expressão; tanto mais que, em grande parte, a sua outorga assenta em clubites ou interesses individuais, ou individualizáveis.
Por sobre todo o anterior e repescando o início, como diria o Almada, morram os Cléon, morram ... pim. Não no sentido da sua eliminação física, claro, mas no da sua inoperância, porque deles está o inferno cheio.

Mas retornemos à organização.
Um caso comezinho da sua manifestação quotidiana, caricato e tão reproduzível quanto os de grãos de areia duma ampulheta, pode encontrar-se no que se passou recentemente no decurso da pandemia de Covid 19. Assim, tendo sido julgado conveniente reforçar a vacina das pessoas com mais de oitenta anos, estas foram convocadas para se apresentarem em determinado dia e hora, em instalações indicadas para o efeito; instalações que funcionavam simultaneamente em regime de casa aberta. Acontece que quando as pessoas entravam no local, independentemente da sua idade (e a maioria não eram velhos de oitenta e mais anos, pois e antes pelo contrário, desde crianças, a jovens e adultos na flor da idade, havia de tudo um pouco e misturado), era-lhes atribuído uma senha com o número da sua chegada e dito que em função dele seriam atendidos. Não valia a pena lembrar do privilégio legal de prioridade de que gozam os anciãos, porque ali era letra morta; porque mandava quem mandara. Assim e amontoados, por hora e meia, as pessoas indistintamente aguardaram que as atendessem, sem, inclusivamente, instalações preparadas para tal tempo de espera e propiciando eventuais desnecessários contágios, bem como e pior, o tormento dalguns senis já visivelmente incapacitados para aqueles tratos. Ora, bastava um bocado de discernimento, de atenção, para se ter implementado outra actuação em que se cumprisse a lei, em que se separassem os idosos dos restantes, em que se os privilegiasse no uso das instalações; os meios estavam lá, era só uma questão de organização, de os serviços servirem e não despacharem ao deus dará. Que o problema não está nos que labutavam no local, nos que desempenhavam o melhor que podiam, e nem sempre nas melhores condições, o seu abnegado e louvável trabalho. Não, o problema reside nos que em casa, ou a gozar tranquilamente o fim de semana, deviam ter pensado, organizado, e não o fizeram. É sempre o mesmo, o mexilhão é que se ... . Exemplo este que, repete-se, tem uma frequência inquietante no microcosmos do quotidiano a que estamos sujeitos e que, pelos vistos, não merece uma qualquer atenção dos que governam, dos que ordenam e deviam organizar bem, porque para isso estão lá. No polo oposto desses infindos casos, no de grandes opções, a balbúrdia com o aeroporto de Lisboa (e porque não do país, que é quem o vai pagar?; lembrando que as grandes infraestruturas aéreas vão sendo sistematicamente afastadas dos aglomerados urbanos - Shiphol, Chicago, Charles de Gaulle, Heathow, Dallas, Gatwick, etc.-).

Mas regressemos à desorganização, vulgo organização. É a pecha que se aspira neste País. E quase que se poderia dizer que é regra no que concerne à administração pública. Tanto mais que não é preciso ser muito avisado para se o notar. Aliás, como se costuma ouvir e se afirma com alguma displicência, o desenrascanço está promovido a virtude nacional. No desdém de que de desenrasque em desenrasque se cai rapidamente no abismo. Num ponto de difícil retorno. Não se tem a noção disso? É pena, porque as oportunidades de um desenvolvimento verdadeiramente sustentável e coerentemente direccionado vão se atrasando. E a democracia vai-se esfumando.

Ora, perto de 2.500 anos separam Aristófanes de David van Reybrouck (Tegen Verkiezingen), mas a verdade é que aquela, a Democracia, não evoluiu, não se adaptou à enorme dimensão da organização das sociedades actuais (federações, uniões, países ou até organismos internacionais) e parece estar numa fase de estertor. Numa decomposição que começa a feder.
Não será tempo de repensar a efectivação da sua essência e recauchutá-la?

Fundevila, 29 de Junho de 2022


terça, 05 julho 2022 17:12 em Opinião

Imprimir