Tempo



Tenho alguma dificuldade em entender a preocupação geral com o tempo meteorológico. Não sendo nenhum de nós nem agricultor,

nem pescador, nem noiva nas proximidades do casamento, a obsessão pelo tempo parece-me sempre exagerada.

Como vai estar o tempo? Já viste este tempo? São frases de uma retórica escusada que de nada adianta ao próprio tempo, preenchendo, quando muito, o espaço de conversas indolentes. O tempo, esse tempo meteorológico que tanto nos consome, será sempre afinal adivinhável quando se abre a janela pela manhã. Para quê sofrer por antecipação e esmiuçar as previsões a dez dias? Fará o tempo que tiver que fazer.

No entanto, a centralidade desse tempo é constante nas nossas vidas. Não há jornal que não refira a sua previsão, nem televisão que o não faça igualmente. Às vezes parece que existe uma lei que obriga a fazê-lo, tal como os períodos de antena nas eleições, mas essa lei não existe. Existe apenas o hábito de falar do tempo que vai fazer amanhã, no ontem. Dia após dia. Já puseram raparigas a despir-se para nos distrairmos dessa antecipada realidade, já vimos a previsão ser tão analógica como a vida e, de repente, começar a deslizar furiosamente para o digital e para quadros tão coloridos que magoam a vista e o gosto. Nos mais velhos, seguramente, ficou cravada na memória a gentil presença de Anthímio de Azevedo, um senhor. Cheguei-o a ver apontado com uma espécie de batuta em quadros de ardósia branqueados a giz pelo anticiclone dos Açores, pelas frentes frias, pelas frentes quentes, pela graciosidade das curvas isobáricas. Um maestro do amanhã. Desapareceu hoje a elegância da previsão meteorológica engravatada, mas não a contínua preocupação de a fazer, em quadros animados, nos quais a chuva é sempre, e estranhamente, oblíqua.

Nas línguas dos países do Norte há palavras distintas que separam o tempo meteorológico do tempo cronológico. Nos países latinos, como o nosso, isso não existe, já que a amenidade do tempo meteorológico convida à preguiça de o confundir com o tempo cronológico.
Na língua portuguesa abundam as palavras, mas estranhamente decidimos poupar aqui. Tanto tempo já passou, que tempo está hoje, são frases diversas, e até opostas em termos da profundidade que revelam, mas utilizam ambas o mesmo vocábulo: tempo.
O tempo que realmente nos preocupa não é seguramente o tempo da chuva ou do sol, mas o nosso tempo em existência, o tempo daqueles que amamos, daqueles com quem conversarmos, daqueles a quem o tempo priva, muitas vezes, da realidade física dos outros, obrigando a memória a preencher vazios ou, na mais inapelável das hipóteses, a abrir feridas ... a que só o tempo pode dar resposta.
Por isso falar do tempo meteorológico, preocuparmo-nos com ele, é uma espécie de exercício de ilusão para nos referirmos de forma leve ao tempo que realmente nos oprime, preocupa e tantas vezes entristece. Mas, por outras vezes, nos é também generoso.

Habitar a substância do tempo – na feliz expressão de Sophia – é como habitar uma casa. Há quem as transforme e pessoalize, há quem as atafulhe, há quem as minimalize, e há quem pura e simplesmente se acomode ao espaço pré-existente. Uma opção não é necessariamente melhor do que a outra, são apenas diferentes e legítimas as escolhas que têm a ver com cada um de nós, com a nossa vontade, com a nossa disposição, com o nosso tempo interior.
Quando uma casa fica vazia de alguém que a habitou, é a ela que recorremos para perceber o que se perdeu no tempo e pelo tempo. A casa do tempo cronológico de cada um constrói-se na memória dos outros e, tantas vezes, essa memória metamorfoseia-se em saudade. A palavra que, ao contrário do tempo, verdadeiramente nos sobra.

À memória de João Gomes Alves, um amigo.

Rui Vítor Costa

terça, 31 maio 2022 08:56 em Opinião

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