Pacem in Terris

Comemora-se no próximo ano, a 11 de Abril, a passagem do sexagésimo aniversário da publicação da encíclica papal “Pacem in Terris”,

aquela que seria a última e das mais famosas da autoria do papa João XXIII, partido para a eternidade alguns meses depois, a 11 de Junho de 1963.

Depois de quase oito décadas consecutivas de paz, momentaneamente interrompida no Kosovo aquando do desmembramento da Jugoslávia, vive a Europa, agora, tempos amargurados e dolorosos, sobretudo os povos Ucranianos e Russos, na sequência da invasão da Ucrânia decretada no passado dia 24 de Fevereiro pelo autocrata Vladimir Putin, acolitado por corruptos falcões do poder militar que ao longo dos últimos 10 anos se têm vindo a apoderar de parte substancial dos 5% do PIB que a Rússia veio destinando ao investimento nas forças armadas.

Na verdade, os horrores da guerra vão-nos entrando, diariamente, pela porta dentro, com imagens chocantes de um povo que sofre ao ver destruído o seu
património pessoal e colectivo, ao ver a perda de familiares queridos, ao ser obrigado a refugiar-se nos países vizinhos, ao viver a amargura da separação de pais e filhos, ao ver a tentativa de destruição de uma identidade e história comum.

Um povo que, lutando pela sua liberdade e pela sua soberania, nos faz tomar consciência de quanto sofreram os nossos antepassados para construir o país
que hoje somos.

A propósito desta ameaçadora guerra questionámo-nos sobre que papel têm desempenhado as instâncias internacionais, sobretudo a Organização das Nações Unidas, na denúncia e na paragem desta inadmissível violação do direito internacional, desta prática contínua de crimes de guerra. Tratando-se de países com população maioritariamente cristã, que iniciativas tem havido por parte das várias igrejas cristãs? Infelizmente, as poucas conhecidas, têm-se manifestado incapazes de interromper o ritmo ascendente do conflito.

A igreja, alicerçada nos ensinamentos do evangelho de Jesus, não poderia deixar de condenar esta tragédia e de se colocar ao serviço das vítimas. Já assim foi na segunda grande guerra que devastou a europa em 1939/1945.
Angelo Giuseppe Roncalli, depois de ter salvado milhares de judeus na Turquia enquanto lá desempenhava as funções de Delegado Apostólico, foi nomeado núncio apostólico em Paris pelo Papa Pio XII em 1944, tendo por isso vivido com grande proximidade e intensidade os dramas da Segunda Guerra Mundial.

Eleito Papa em 28 de Outubro de 1958, ficou conhecido pela sua jovialidade, pelos seus escritos e, sobretudo, pela convocação do Concílio Vaticano II que
haveria de marcar de forma indelével a reforma litúrgica da Igreja, o apostolado dos leigos, os novos rumos para o ecumenismo e pastoral católica e uma nova
abordagem aos problemas do Mundo moderno.

Já no final do seu papado publicava um dos mais famosos escritos, a encíclica “Pacem in Terris” que nestes tempos de guerra se manifesta de grande
actualidade.

Logo na sua introdução, realça a ordem maravilhosa que no Universo reina nos seres vivos e nas forças da natureza, em contraste com a desordem que reina
entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força.

Assenta numa visão optimista, não condenando os males que afligem o mundo, antes confiando nos destinos da humanidade, ao identificar o mundo
contemporâneo como um mundo desordenado no qual, apesar disso, o homem progride e cresce na realização de si mesmo, caminhando assim a humanidade
para tempos melhores.

Apresenta-se como uma encíclica não contra a história, mas sim acompanhando os ventos da história, com as grandes transformações sociais e económicas, como a ascensão das classes trabalhadoras no campo económico social político e cultural, obtida através da reivindicação de direitos pelos trabalhadores para não serem tratados como simples coisas, sem entendimento nem liberdade, à mercê do livre-arbítrio alheio, mas como pessoas em todos os sectores da vida social.

Realça a eliminação da relação entre povos dominadores e povos dominados resultante da recusa generalizada a permanecer sujeito a um poder político exterior à respectiva comunidade ou grupo étnico e do progressivo acesso de todos os povos à Independência.

Salienta a ideia da igualdade natural entre os homens com a consequente desautorização doutrinal das discriminações raciais e dos preconceitos de superioridade fundados em privilégios económico sociais, no sexo ou na posição política.

Ainda sobre a corrida aos armamentos, refere a encíclica, no seu ponto 113 “todos devem estar convencidos de que nem a renúncia à competição militar, nem a redução dos armamentos, nem a sua completa eliminação, que seria o principal, de modo nenhum se pode levar a efeito se não se proceder a um desarmamento integral que atinja o próprio espírito, isto é, se não trabalharem todos em concórdia e sinceridade para afastar o medo e a psicose de uma
possível guerra, mas isso requer que, em vez do critério de equilíbrio em armamentos que hoje mantém a paz, se abrace o princípio segundo o qual a
verdadeira paz entre os povos não se baseia em tal equilíbrio mas sim e exclusivamente na confiança mútua”.

E ainda no ponto seguinte: “As mútuas relações internacionais, do mesmo modo que as relações entre os indivíduos, devem-se disciplinar, não pelo recurso à força das armas, mas sim pela norma da recta razão, isto é, na base da verdade, da justiça e de uma activa solidariedade”.

Imitando João XXIII nesta encíclica, termino evocando Pio XII: "Nada se perde com a paz, mas tudo pode ser perdido com a guerra".

Guimarães, 22 de Março de 2021
António Monteiro de Castro

terça, 22 março 2022 15:31 em Opinião

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