di“GUERRA E PAZ”

I.
Por mais que tente fixar-me em tema diferente do desgraçado tempo de guerra em que vivemos, não vejo como fugir ao assunto.

 

Neste momento estou a ouvir que nenhum resultado útil para a paz decorreu das conversações que chegaram a iniciar-se na fronteira entre a Ucrânia e a Bielorrússia, as quais, apesar do muito ténue otimismo que com o anúncio delas chegou a invadir-me, verifiquei serem mais um estratagema de Putin para melhor adequar as posições das tropas russas ao objetivo de ultrapassar a inesperada resistência com que se têm deparado, nomeadamente para a tomada de Kiev.

A escalada de ameaças proferidas pelo presidente russo parece resultarem, como foi referido por inúmeros comentadores das mais variadas tendências, de um sentimento de desespero de que estará apossado, face à condenação que tem merecido, por praticamente toda a comunidade internacional, e ao não apoio por parte da China que, até agora, no presente contexto tem adotado a prudência que é apanágio da sabedoria oriental. Não que a China não tenha pretensões de hegemonia, seja económica, política, estratégica e militar; só que sabe que o tempo, a manterem-se o declínio tanto americano como russo, joga a seu favor, e mais lhe vale, em vez de atiçar o fogo dos conflitos entre o ocidente e a Rússia, colocando-se ostensivamente ao lado daquele ou desta, aguardar pacientemente que a fogueira consuma as achas para depois ir recolher e usar como mais jeito lhe der o carvão sobrante.
Sinto que Putin é um homem enraivecido com o desmoronamento da União Soviética, da fuga dos principais países que a orbitavam, mais ou menos forçadamente, para a órbita ocidental, com a exposição das fraquezas soviéticas até então camufladas pelo rigor da censura imposta à comunicação social e do secretismo a que se entregou a nomenklatura.
Essa raiva pode ser a causa das subliminares, mas nem por isso menos demenciais, ameaças de Putin ao lembrar a capacidade nuclear da Rússia e sua prontidão operacional; tenho presentes opiniões segundo as quais tais ameaças não passam de tentativas para atingirem a resistência ucraniana e provocarem o abrandamento do apoio ocidental à Ucrânia. Todavia o temível é que os ditadores, quando proferem ameaças com o intuito de apenas obterem efeitos com elas, na convicção de que tal bastará para obterem os resultados desejados, não raro acabam por não terem como recuar na concretização delas, sob pena de perderem a face perante o seu povo.
Apesar de se saber bem que Putin além de ditador e da sua tendência para imperador é um mentiroso compulsivo totalmente despudorado, também não se pode esquecer que terá havido, da parte do ocidente, na frente diplomática, grande inabilidade e boa dose de provocação por parte dos Estados Unidos e da NATO e incompreensível excesso de ausência e muita inabilidade por parte da Europa.
Tenho presente, igualmente, que ao complexo político-militar dos Estados Unidos faltaram os “mercados” da Síria e do Afeganistão, pelo que lhe convém a política de reabastecimento e melhoria armamentista desencadeada nos países do ocidente europeu face à deflagração da guerra na Ucrânia, e tenho presente que os Estados Unidos estão famintos de mercados para os seus excedentes petrolíferos e para o seu gás de xisto que conseguiram tornar comercializável, pelo que lhes é altamente útil a não entrada em funcionamento o Nordstream 2, o gasoduto destinado a abastecer a Alemanha, e a partir dela, a Europa, com o gás russo.
A este respeito foi devidamente esclarecedora a afirmação do presidente americano, Joe Biden, ainda que na presença do chanceler alemão, de que ele, presidente, e ela, América, não permitiriam que aquele gasoduto entrasse em funcionamento, assim exibindo intolerável e diplomaticamente deplorável sobranceria relativamente a um país aliado, e demonstrando, além disso, total indiferença pelos interesses dos europeus.
Portugal, com o seu porto de águas profundas, em Sines, poderá vir a beneficiar muito ao tornar-se – como disse o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva – um indispensável ponto de entrada de petróleo e gás para a Europa, substitutivo do combustível russo. Só que isso também coloca Portugal como um dos alvos de primeira linha em caso de conflito no qual o nosso país porventura viesse a ficar envolvido. Por mim, preferia que assim não fosse, mas fica registado.
Finalizando esta matéria, dou parte das minhas saudades da Srª Merkl. Com ela, creio bem, nada de tão grave estaria a acontecer.

II.
Assisti ao primeiro espetáculo no Jordão recém reconstruído. Senti alguma emoção ao passar pelas portas que eram precisamente as mesmas de quando ali entrei pela primeira vez, não tinha ainda cinco anos dos setenta e oito de idade que completei ontem. Em vez de avô, era eu então neto, e como neto me levou o meu avô a ver os dois primeiros filmes que vi e únicos que com ele presenciei; “O Pequeno Lord” e o “Heidi”, ambos histórias de avô e neto, quanto ao primeiro, de avô e neta no que ao segundo toca.
Tenho do Teatro Jordão as memórias de espectador, o que até à entrada em vigor da classificação etária dos filmes acontecia com enormíssima frequência, sendo os filmes que eu via, levado pelas minhas tias, invariavelmente westerns ou de capa e espada, tendo-me os primeiros “ensinado” serem os índios demónios, e os cow boys angélicas criaturas, e os segundos os de aventuras com espadachins e piratas, mas sempre de bons e maus.
Nos intervalos eu e o meu principal, o maior e quase único amigo de então corríamos velozmente por entre as filas da plateia, alternando cada um de nós entre índio e cow boy, entre pirata e lord, entre Zorro e Governador.
No Jordão, e numa pausa dessas brincadeiras, o meu amigo desflorou a minha crença no Pai Natal, dizendo-me, textualmente, o que jamais esqueci: «Sabe quem é o Pai Natal? O Pai Natal não é o Pai Natal. O Pai Natal são os nossos pais.» Em estado de choque lá regressei ao meu lugar enquanto as luzes da sala se iam apagando muito lentamente.
Mas daquela casa guardo também as memórias de quem lhe pisou io palco e calcorreou os camarins, que fiquei a conhecer bem.
Começou sendo eu ainda menino da escola primária, passou por várias récitas do então 7º ano do Liceu, pois nelas atuei a partir do meu 4º ano, seguiram-se espetáculos em tournées da Tuna Académica de Coimbra, enquanto frequentei a Universidade daquela cidade e, finalmente, na atividade política, em diversos comícios do Partido Socialista ali levados a cabo.
Dessas atuações, as lembranças mais impressivas que tenho são, uma, a do muito particular cheiro da zona dos camarins, porventura mistura dos odores corporais de centenas e centenas de atores, atrizes, fadistas e gente da música que por ali circularam, dos perfumes, produtos de caraterização, tabaco e outras drogas inaláveis, odor que ainda hoje consigo sentir como se o ar que me rodeia estivesse deles impregnado; outra, a do silêncio absolutamente sepulcral, mas inebriante para quem representa ou discursa, que por vezes se faz na espectativa de toda a audiência à palavra seguinte, ou ao próximo movimento de quem discursa ou representa.
Mais pequena do que a original, a sala que estrei no passado dia 26 respeita com maestria o espírito da arquitetura da original, e é sincero o meu propósito de a frequentar com assiduidade, assim lhe seja dado, como acredito que acontecerá, assíduo e cativante uso.

António Mota-Prego

Guimarães, 28 de fevereiro de 2022
Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.


terça, 01 março 2022 17:44 em Opinião

Imprimir