Dúvida quase existencial



Não é raro que o decurso do tempo preserve nos humanos parcelas do modo de ser que foi o seu ao longo das épocas da vida já vivida.


Por isso são tantos os amigos e amigas da minha geração que, uns mais que outros, tomam atitudes filhas de nacos de sadia desinibição adquirida na juventude que o tempo, ao consumir esta, se limita a refrear-lhe os ímpetos, mais ou menos frequentes, de apimentar o comportamento do seu portador.
Renascido nos anos 60 do século passado, simultaneamente produto e causa da autenticidade comportamental então nascida, quando o momento e as circunstâncias estão de feição, e para o efeito me sinto devidamente acompanhado, lá me entrego a uma ou outra pequena loucura.

A propósito da introdução acima, passo a narrar um episódio ocorrido numa primavera de ano que não sei precisar, mas em que, como relatarei, já o meu cabelo era completamente branco.
No meu círculo de amizades muito antigas, conta-se uma artista de estilismo de moda, que para as suas criações (magníficas, devo dizer) usa frequentemente tecidos tradicionais, nomeadamente burel, tecido feito de lã de ovinos da Serra da Estrela, que a minha amiga encomenda a tecedeiras da região.
Uma cadeia de TV pretendeu efetuar programa que incluía uma passagem de modelos de roupa da criação da minha amiga, escolhendo para cenário uma aldeia do concelho de Viseu, Fernão Joanes, terra de transumância na qual existe um curioso lugar com ruas empedradas, dotadas de identificadora toponímia, pequenas casas de pedra e telhado, nas quais, em vez de pessoas, se acolhem animais que fornecem a lã para os tecidos, o leite para o famoso queijo da serra e a carne para deliciosos assados e ensopados.
Eu e minha mulher, com amigos e amigas de amizade nascida e cimentada nas ruas, cafés, bailes e encontros de Coimbra, mais tarde amigos e amigas também da referida artista, quisemos associar-nos a ela no evento artístico e aproveitar para um agradável e fraternal convívio e para, ao mesmo tempo, ficarmos a conhecer a região e seus tradicionais costumes, que incluíram uma hábil tosquia de ovelhas, na qual os tosquiadores rivalizam em cortes dos mais imaginativos desenhos, porventura inspiradores de cabeleireiros de vários dos atuais jogadores de futebol.
O evento foi de manhã, o que nos obrigou a ir de véspera e pernoitar em Viseu, única localidade da região com disponibilidade de camas, então reduzida às de uma modesta mas simpática residencial, na qual reservei, para o meu casal, o único quarto então disponível.
Momentos antes da partida para Viseu, mais uma amiga, tornada lisboeta por profissão, mas na altura de férias na sua minhota e natal freguesia de Bucos, Cabeceiras de Basto, imprevistamente manifestou desejo de se associar ao grupo. Para tal telefonou-me reclamando boleia e pedindo ajuda na marcação de dormida.
Instada a residencial para acolhimento de mais uma pessoa, reafirmaram a inexistência de quarto, mas esclareceram que o que me calhara era triplo. Arrematei de imediato. A confiança, amizade, precedentes e profundo conhecimento recíproco não me permitiram sequer a mais leve hesitação.
Chegámos a Viseu pelas 23h; porta da residência fechada mas campainha ao dispor, acionámo-la. Atendeu-nos, mais que ensonado, de roupão de flanela aos quadrados e chinelos, sujeito de tez e estatura bem lusitanas, cabelo encaracolado e hirsuto bigode, ambos negro azeviche. “Se calhar é turco …”, sussurramo-nos humoradamente.
De olhos algo piscos e após passagem, desde a ponta da falangeta até à base da falange do indicador direito, pelo adorno subnasal, mais que olhar, observou-nos e, vendo um homem e duas mulheres disse, textualmente: “ah! sois os do 107”. Entregou-nos a chave e apontou o caminho para o respetivo quarto.
Deitamo-nos devidamente, dormimos, e acordamos tão devidamente quanto nos deitáramos. Por também devidas razões estratégicas fui o primeiro a levantar-me, arranjar-me e subir ao andar superior onde se encontrava a sala dos pequenos almoços.
A um balcão, postura inequivocamente de anfitriã, uma senhora de idade indefinida que devia chamar-se Amélia, nome para que apontavam as suas feições, ao ver-me parou de limpar a chávena que a ocupava e, sorridente, perguntou: “o senhor está sozinho?”
O que ela foi perguntar!
Nesse momento passou-me uma coisa pela cabeça, vi a senhora como se através de uma névoa de resplandecente alvura, apagando-se tudo o mais, lembrei-me das várias personagens que, estudante, interpretei nos palcos tanto de Coimbra como de outras localidades, e saiu-me, compondo ar de ingénuo embaraço: “não minha senhora. As minhas esposas estão a acabar de se arranjar e vêm já.”
A D. Amélia, retomando a limpeza da chávena e sem alterar o sorriso nem a expressão com que me acolhera, retorque: “então o senhor é o do quarto 107…” Assenti e sentei-me na mesa já posta para três, aguardando que chegassem as minhas companheiras de pernoita.
A anfitriã comportou-se com a maior das naturalidades, serviu-nos o desjejum com uma simpatia absolutamente normal, perguntou se estava tudo bom – estava – adivinhou que viéramos para a passagem de modelos e, finda a refeição, abandonámos a sala com delicada troca de acenos de cabeça entre nós, hóspedes, e a hospedeira.
Ao chegarmos à porta de saída da residencial, a minha mulher verificou que se esquecera dos cigarros na mesa do pequeno almoço, que me prestei de imediato a ir buscar.
Quando assomei à entrada da sala logo expliquei que ia pelos cigarros que ali tinham ficado esquecidos e, mal acabo de fornecer a razão do meu retorno, a D. Amélia, ainda atrás do balcão na tarefa de limpeza de louça, sempre com os mesmos ar e sorriso de simpatia com que antes me acolhera (Fernando Pessoa diria que mesma era só a pessoa, pois o ar e o sorriso, porque em tempo diferente, já eram outros), profere:
“Que engraçado! O senhor, quando agora o vi entrar, lembrou-me mesmo um cliente espanhol que aqui vem muito: mais ou menos a mesma altura, assim simpático como o senhor, cabelinho todo branco, e também tem duas esposas …”

Ainda hoje, sempre que lembro isto, me assalta a dúvida sobre se D. Amélia percebeu o que me passara pela cabeça e entrou, com ironia, na pequena peça que eu representara ou, na realidade, a sua residencial é um insuspeito atrativo para casais de três.
Tal como nos anos 60, porque a atração para a noite de núpcias de vários casais vimaranenses foi a Pousada se Santo António de Serém, em colina contígua à Estrada Nacional , com romântica vista para o início do estuário do Vouga, houve quem passasse a chama-la por “Cemitério das Virgens”.

Guimarães 07 de novembro de 2021
António Mota-Prego
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terça, 07 dezembro 2021 18:39 em Opinião

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